SYLVIA COLOMBO, ENVIADA ESPECIAL
GUADALAJARA, MÉXICO (FOLHAPRESS) – Ganhador em 2017 do prêmio Cervantes, o principal da língua espanhola, o nicaraguense Sergio Ramírez, 75, lança um romance em que volta a refletir sobre seu passado durante a Revolução Sandinista (1979-90), que derrubou a ditadura de Anastasio Somoza, em 1979.
Integrante do chamado Grupo dos Doze, formado por intelectuais, empresários e sacerdotes que apoiaram a Frente Sandinista de Liberação Nacional, ele também fez parte da Junta de Governo de Reconstrução Nacional, que comandou o país após a queda de Somoza.
Dela faziam parte o atual presidente Daniel Ortega, Ramírez e Violeta Chamorro -eleita presidente em 1990.
Em 1984, convocaram-se eleições, vencidas por Daniel Ortega. Ramírez foi seu vice-presidente de 1985 a 1990.
Em entrevista em Guadalajara, no México, ele falou de sua desilusão com a revolução, do “fracasso em melhorar o país” e da transformação do antigo aliado Ortega “em um populista comum e conservador”.

Pergunta – Há quem fale de uma “primavera da América Central”, por causa dos protestos contra a corrupção. Por outro lado, a região possui índices de violência altos. Como a vê?
Sergio Ramírez – A vantagem da América Central é sua integridade territorial, uma história e uma tradições culturais muito enraizadas e compartilhadas.
Já no que diz respeito a política e economia, há menos território comum para que exista entendimento. Alguns países ainda resistem em dialogar com outros, fecham-se em seus problemas.
Não somos países viáveis economicamente se vivermos isolados, e temos de compreender isso.

Seu novo romance, “Ya Nadie Llora por Mi” (ninguém mais chora por mim, ed. Alfaguara), tem um personagem com um passado de atuação na luta sandinista. É um alter ego?
– Em certo sentido, sim, pois temos um ponto de vista parecido sobre a história recente do país. Mas as trajetórias são diferentes: o protagonista é um ex-combatente, e eu nunca atuei na luta armada.
O personagem do livro é um policial aposentado que se transformou em investigador particular. Mas tem um passado guerrilheiro e está mutilado, perdeu uma perna. É um arquétipo daqueles que, como eu, sofreram um desencanto com a revolução.

O sr. vive hoje praticamente apenas da literatura. Sente que abandonou a política? Ela está em seus livros…
– Eu não renego meu passado sandinista de modo nenhum. Porém, sempre ressalto que entrei na revolução, mas não na política. Nunca tive o projeto de fundar um partido e de competir em eleições. Entrei para a Frente Sandinista porque havia um chamado geral às pessoas sensatas para derrubar a ditadura Somoza.
Depois que tomamos o poder, era preciso ocupá-lo. Primeiro, integrei a Junta de Governo. Em seguida, disputei as eleições com Daniel Ortega, [como vice] e ocupei o cargo.
Mesmo nas piores circunstâncias da luta contra Somoza e depois, na guerra contra os contras [rebeldes que tentaram derrubar a Frente Sandinista, com apoio dos EUA], nunca deixei de escrever. Era preciso refletir sobre o que ocorria, e eu fazia e ainda faço isso a partir da literatura.
Depois, saí da Frente Sandinista por não estar mais de acordo com o rumo das coisas, e fundamos o Movimento Renovador Sandinista [pelo qual foi candidato presidencial em 1996]. Mas logo optaria por ficar só na literatura, porque a revolução não cumpriu aquilo a que nos propusemos.

Quando o sr. vê e ouve Ortega hoje, que sensação lhe produz?
– Sinto que mudou tudo. É outra situação, em que permaneceu apenas a retórica revolucionária, com seu discurso anti-imperialista e anticapitalista. Mas nada disso é verdade, porque o governo de Ortega tem uma aliança profunda com os grandes empresários.
Por outro lado, me dói perceber que a Nicarágua não mudou estruturalmente em quase nada. Metade da população vive na pobreza aguda, e mais de 70% dos empregos são informais.
Ortega virou essa espécie contemporânea de populista que, com o dinheiro que Hugo Chávez (1954-2013) lhe deu, investiu em programas sociais. Mas nem nisso foi eficaz.

Algumas das bandeiras progressistas da época, pelo menos, permaneceram, ou não?
– Não. Ao contrário, elas foram todas abandonadas. Temos um Estado muito católico, nada laico. A Nicarágua é um dos cinco países no mundo que proíbe o aborto em qualquer circunstância, e não se avançou em direitos a minorias, não se legalizou o matrimônio homossexual.

Há censura à imprensa?
– Há um tipo particular de censura à imprensa, com outro procedimento que não as intervenções do passado. Com o dinheiro venezuelano, o governo comprou praticamente todas as estações de televisão e de rádio. Restam uma emissora e um jornal mais independentes, que o regime deixa que existam apenas para que não se diga que não há nenhuma liberdade de expressão.

O sr. considera o regime de Ortega um novo tipo de ditadura?
– Sim, porque as instituições estão lá, mas anuladas. Temos um Congresso que já declarou que não está ali para legislar, apenas para aprovar o que o Executivo mandar. Um Congresso em que não há representantes da oposição. Nossa corte suprema é muito dócil, e as decisões judiciais sempre estão sujeitas à intervenção do poder político.

Como o sr. explica que, mesmo rodeada de países que vivem surtos de violência, a Nicarágua experimente uma paz relativa?
– A segurança pública na Nicarágua foi estabelecida ainda antes de Ortega voltar ao cargo, em 2006. Nos anos 1990, durante o governo de Violeta Chamorro, houve uma reorganização do Exército e da polícia. Hoje, mesmo alinhadas ao governo, as forças de segurança seguem sendo muito profissionais e impediram a entrada na Nicarágua das “maras” [facções criminosas] de El Salvador, Honduras e Guatemala.

O sr. crê que o país está a salvo, portanto?
– Não, de forma nenhuma, há uma tentativa constante das “maras” de entrar na Nicarágua. Já vimos episódios de demarcação de território, como corpos despedaçados e cabeças que apareceram em algumas regiões da fronteira.

Há alguma outra característica específica para explicar essa relativa paz no país?
– Sim, creio que, na Nicarágua, pesa muito a memória da violência. Mesmo que a maioria das pessoas, cerca de 70% da população, tenha menos de 30 anos, ou seja, não tenha vivido a guerra, há uma recordação coletiva que se transmite de uma geração para outra.
Há uma consciência coletiva de que a guerra não deve se repetir.