LEONARDO NEIVA

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A tentativa dos personagens do filme “O Jantar” de impedir que seus filhos sejam punidos por um crime bárbaro reflete uma sociedade contemporânea narcisística, em que as novas gerações não são preparadas para lidar com a responsabilidade por seu atos. 

A dificuldade dos adultos de entender o que motivou esse crime indica também um momento de mudança nos valores da juventude, que afeta a relação dos filhos com seus pais, criados por modelos hoje considerados ultrapassados.

Essas foram algumas das questões discutidas durante debate na Cinemateca Brasileira nesta quarta-feira (4), após a exibição do longa de Oren  Moverman, que tem no elenco os atores Richard Gere, Laura Linney, Rebecca Hall e Steve Coogan.

O evento faz parte do Ciclo de Cinema e Psicanálise, mostra realizada pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e pela Cinemateca Brasileira, com apoio da Folha de S.Paulo.

Na história, dois irmãos e suas esposas se reúnem para um jantar, em que tentam superar suas diferenças e definir o caminho que tomarão em relação aos filhos, cúmplices no assassinato de uma moradora de rua.

Para a psicanalista Lia Cypel, parte da origem desse crime está na ausência dos pais. Se Paul (Steve Coogan) sofre de transtornos mentais e tem dificuldade de se conectar com o filho, Stanley (Richard Gere), um deputado em meio a uma campanha para governador, age de maneira mais racional, mas é também uma pessoa dispersa e distante da família.

“Hoje na minha clínica vejo muitos pais desorientados, sem saber o que fazer com os pequenos”, contou Cypel. “Os exemplos de formação que eles tiveram não servem mais como modelo. Com essa insegurança, as crianças assumem o controle. Mais tarde, esses pais serão cobrados sobre tudo aquilo que deixaram de fazer na infância dos filhos, porque adolescentes não perdoam.”

Um outro problema, de acordo com a psicanalista, é a falta de limites impostos na criação dos jovens. Um exemplo disso seria Claire (Laura Linney), mãe de Michael (Charlie Plummer), garoto que demonstra sentir prazer com o assassinato. A personagem, no entanto, é superprotetora e trata o filho como uma criança de boas intenções, cujo ato criminoso seria fruto de ingenuidade.

Lia Cypel destacou também como ponto crucial o narcisismo dos personagens. Segundo ela, quase todos têm grande dificuldade de reconhecer os direitos de outros indivíduos. Em mais de um momento do filme, por exemplo, há tentativas de desumanizar a vítima para diminuir a gravidade da ação dos jovens.

Um outro problema é que os pais não agem inteiramente como adultos, de acordo com o jornalista da Folha Fernando Canzian. A única exceção seria Stanley, que reconhece que o assassinato deve afetar gravemente o futuro dos jovens e procura convencer a família de que o melhor caminho é deixar a Justiça puni-los.

O jornalista também afirmou que há na sociedade um grande medo da castração, ou seja, do cerceamento do direito à liberdade do indivíduo. Por isso, segundo ele, torna-se cada vez mais raro que pais estabeleçam regras severas para as crianças e as ensinem sobre as consequências de seus atos.

Um fator apontado como essencial por Lia Cyple no filme foi o excesso de diálogos. Embora haja conversas longas e prolixas, a psicanalista disse que as palavras são usadas não para explicar, mas sim como recurso para ocultar o tema real do encontro: o crime cometido pelos jovens.

Essa tentativa de esconder a essência das coisas estaria presente até mesmo no cenário da narrativa, segundo Canzian. “É irônico acompanhar aquele jantar tediosamente sofisticado, que acontece enquanto está sendo bolado um crime. É a questão da importância das aparências que existe hoje”, afirmou.

Para ele, o uso dos diálogos lembra as discussões contemporâneas em redes sociais, principalmente as que envolvem política. “São palavras usadas sempre de forma contundente e sem nenhum fundamento”.

O primeiro módulo do Ciclo de Cinema e Psicanálise, intitulado “Mal-estar na Civilização e Família”, segue até o dia 25 de abril, com apresentações de filmes sempre às 19h de quarta-feira, na Cinemateca Brasileira (Largo Sen. Raul Cardoso, 207 – Vila Clementino).

Todas as sessões são seguidas de debate sobre o filme e o contexto psicanalítico. A última sessão deste módulo discutirá o longa chileno “Uma Mulher Fantástica” (25/4), vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro. A entrada é gratuita, basta se inscrever em www.sbpsp.org.br