GABRIEL BOSA

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Os espelhos que aparecem ao longo de “Uma mulher fantástica” mostram mais que as expressões da protagonista. Neles, é projetada a luta constante do ser transgênero em se afirmar como mulher, e ainda ter que enfrentar toda sorte de preconceitos.

As imagens refletem ainda a angústia de Marina (Daniela Vega) ao ser alijada do seu companheiro de forma repentina, sem ao menos ter a oportunidade de consumir o luto.

Estas foram algumas questões do debate, nesta quarta-feira (25), na Cinemateca Brasileira, após a apresentação do longa de Sebastián Lelio e que deu ao Chile a primeira estatueta do Oscar de melhor filme estrangeiro, em 2018.

Para a psicanalista Cândida Sé Holovko, a presença constante dos espelhos no longa foi uma forma sutil do diretor apresentar a dualidade da personagem, ora exaltando o seu lado feminino, ora o masculino.

“Os transgêneros pensam que houve um engano da natureza, que aquilo não os pertence. Ela sente que tem um corpo de homem, mas todo o interior é de mulher”, afirmou.

“Uma Mulher Fantástica” apresenta a luta da protagonista ao lidar com a morte de Orlando (Francisco Reyes), seu companheiro. Além da perda, Marina precisa enfrentar o preconceito e violência da família dele e o constrangimento imposto por autoridades.

A especialista enxerga no título uma mensagem que pode ser interpretada por ângulos distintos. Mais do que apresentar uma mulher excepcional por encarar diferentes conflitos, o adjetivo mostra a identificação dúbia dela como um ser.

“‘Fantástico’ também tem a ver com o fantasioso, e tem a ver com essa questão de pessoas transgêneros, e como as identificações nunca são unitárias, elas sempre têm um quê de ficcional.”

As cenas de realismo fantástico exaltam a força da personagem, afirmou a psicanalista. O principal exemplo é a imagem de Marina andando em meio a um vendaval, se mantendo firme, apesar das folhas e objetos que são projetados contra seu corpo.

“Imediatamente nos remete a essa mulher que tem força para enfrentar situações muito difíceis. Ali se mostra uma série de conflitos, as tempestades internas com esse confronto do corpo que não bate com a alma.”

O embate com a família do ex-companheiro desperta a curiosidade de saber como Marina era vista pelos seus próprios familiares, disse Miriam Tawil, psicanalista e mediadora do debate entre Cândida e a plateia.

No longa, as únicas relações, de forma harmoniosa, se tratam com uma irmã e o cunhado da protagonista.

“Que tipo de família ela veio, o que aconteceu com ela? O diretor deixou para cada um imaginar. Na clínica, quando recebemos um paciente trans, sempre tem uma família muito complicada.”

Segundo Cândida, após a morte de Orlando, as ações de violência por parte da família e da sociedade exaltam o sentimento de abandono enfrentado pela personagem.

“As invasões de fora impedem que ela se retire e faça o luto. Não apenas o luto pela morte de Orlando, mas tudo que ela perdeu junto com isso: o seu apartamento, o olhar dele”, afirmou.

O evento encerrou o primeiro módulo do Ciclo de Cinema e Psicanálise, realizado pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e Cinemateca Brasileira, com apoio da Folha de S.Paulo.

A segunda etapa, o Mal-estar na civilização e amor, iniciará no dia 16 de maio, com exibição do longa “O filme da minha vida”. A programação inclui “Ela” (30/5), “Me chame pelo seu nome” (13/6) e “45 anos” (27/6).

Todas as sessões iniciam às 19h e são seguidas de um debate sobre o filme e o contexto psicanalítico. A entrada é gratuita, basta se inscrever em www.sbpsp.org.br