A propósito da comemoração do Dia da Tolerância, lembremos Herbert Marcuse, grande pensador marxista, que na metade do século passado observou: o objetivo da tolerância requer intolerância perante as políticas predominantes, atitudes, opiniões, e a extensão da tolerância às políticas, atitudes e opiniões que são proscritas ou suprimidas.
Ao contrário do que poderia parecer, a tolerância não é estabelecida na Lei, que apenas proíbe ou obriga ações, não determina o pensamento. Tolerância é algo muito mais complexo do que a mera aceitação formal de comportamentos, culturas ou aparências diferentes dos nossos. Trata-se de um processo de compreensão profunda do outro, de seus motivos e circunstâncias, e que exige um grau de desprendimento de que nem sempre somos capazes.
Quem frequenta parques em finais de semana, lugares geralmente pacíficos, constata que se tornam barulhentos e tensos, com pessoas dispostas a brigar por motivos banais, e a maioria dessas pessoas é sociável e bem educada em ambientes menos lotados.
Cabemos todos em nossas cidades, porém não no mesmo lugar ao mesmo tempo. A disputa pelo espaço é marca de nossa época e gera stress, conflitos e até mortes; o grau absurdo de agressividade que se constata no trânsito sinaliza isso claramente. Parece que cada motorista, protegido em sua armadura mecânica, acredita ser o concessionário de ruas e cruzamentos com prioridade total, sua pressa ou impaciência se sobrepõe às de todos os demais. Motociclistas, e até alguns ciclistas, embora mais vulneráveis, não são diferentes, costuram feito kamikazes em meio aos veículos sem atentar a riscos a si e aos outros.
Vemos taxistas pararem em muitos lugares proibidos para embarcar e desembarcar passageiros, meramente acionando o pisca alerta de seus carros, e tal comportamento, ainda que cause incômodo aos outros motoristas, é razoavelmente aceito por todos. Em entradas e saídas de escolas, pais e mães param seus automóveis em longas filas duplas para levar ou buscar seus filhos, até mesmo com orientação de agentes de trânsito, e acabamos achando isso natural ainda que a legislação não o permita, pois é antipático e até mesmo mostra de intolerância pretender coibir um comportamento ditado pelo amor e pelo instinto de proteção. Sociedades tolerantes produzem legislações tolerantes, o comportamento social precede a lei. As leis de trânsito não são diferentes, evoluem de acordo com a realidade.
O maior uso do transporte coletivo atenuaria muito o caos urbano, mas o que seria uma escolha racional torna-se a escolha de quem não tem escolha. Alegamos não usar ônibus por motivo de insegurança, desconforto ou inconveniência, e infelizmente temos alguma razão. Isso nunca começará a melhorar enquanto os poderes públicos privilegiarem o automóvel, e continuarão a privilegiá-lo tanto mais o usarmos.
A discriminação racial, num exemplo simples, é expressamente proibida, porém o bom convívio é decorrência de maturidade e bom senso, como o demonstra a tensão que ainda existe entre muitos negros e brancos americanos mais de quatro décadas após a promulgação dos atos que acabaram com qualquer racismo legalizado em seu país. Evidentemente, a situação melhorou muito com a remoção de dispositivos que impediam o acesso de negros a escolas e espaços públicos específicos; e a aproximação entre diferentes demonstrou com clareza às partes que a diferença é quase toda constituída de fábulas.
No entanto, é longo o caminho a ser percorrido em direção ao fim da intolerância com a violência, entre os seres humanos ou entre estes e os animais; melhorar a educação e permitir maior acesso à cultura certamente fará parte desta trajetória.

Wanda Camargo é professora e assessora da presidência do Complexo de Ensino Superior do Brasil