Irmãs Jamais – em aparência, apenas um pequeno filme de um grande diretor. Marco Bellocchio, autor de obras tão fundamentais do cinema contemporâneo como Vincere, Bom Dia Noite e A Bela Adormecida, faz aqui uma espécie de intermezzo sob a forma de cinema doméstico. Mais que isso, pratica um cinema familiar, rodado na sua terra natal, Bobbio, na província de Piacenza, e com vários parentes no elenco. As irmãs do título (Sorelle Mai, no original) são de fato suas irmãs, Letizia e Maria Luisa Bellocchio. Participam também sua filha menor, Elena, e o filho Pier Giorgio. A essa trupe “de sangue” se ajuntam atores e atrizes amigos, como Alba Rohrwacher, Donatella Finocchiaro e Gianni Schicchi Gabrielli.

O filme está saindo em DVD pelo selo Mostra/Livraria Cultura e traz alguns extras interessantes, tais como a primeira versão do filme, uma cena excluída na montagem final e uma entrevista breve com o diretor, além do trailer de cinema. Irmãs Jamais participou do Festival de Veneza, veio para a Mostra de São Paulo. O DVD é uma boa oportunidade de recuperar essa pequena joia do cinema italiano contemporâneo.

Irmãs Jamais tem sua origem numa oficina que Bellocchio realiza todo ano em sua terra natal, e que ele chama de Fare Cinema. “Fazer cinema”, de maneira despretensiosa, com os talentos locais, uma espécie de atividade de férias, entretenimento de verão, mas que acaba dando resultados surpreendentes, como o espectador poderá conferir.

De maneira muito livre, Bellocchio foi rodando os episódios (seis, no corte final), que dependem muito da improvisação, mas mantêm um eixo que lhes dá coerência e espessura. A história se passa ao longo de vários anos, de 1999 a 2008.

No começo, a menina Elena mora com as velhas tias, em Bobbio. Sua mãe é uma atriz, Sara (Donatella Finocchiaro), eternamente em início de carreira, e à procura de uma oportunidade na cidade grande. Está sempre em viagem. Vai e vem, aparece e some, não chegando a se constituir em referência sólida para a garota. A estabilidade, se o termo cabe, vem das tias. Há também o irmão de Sara, Giorgio (Pier Giorgio Bellocchio), que está com namorada nova e tenta montar um negócio. É, claramente, um outsider, com veleidades artísticas, sempre em busca de dinheiro.

Enfim, Irmãs Jamais é uma saga familiar, como as que Bellocchio filmou na juventude, a mais famosa delas De Punhos Cerrados (1965, I Pugni in Tasca, no original). Há, na história, muito de realidade, muito de ficção. O que é bastante real, confessa Bellocchio, é essa função de algumas mulheres como esteios de famílias problemáticas (e qual não é?). Ele conta que, nos anos 1960, ele, e outras pessoas da pequena localidade, saíam para conhecer o mundo e nele atuar.

Algumas pessoas, sobretudo mulheres, ficaram em Bobbio, onde o rumor do mundo chegava bastante atenuado. “Elas eram o porto seguro ao qual voltávamos depois de nossas batalhas”, diz o cineasta, deixando de acrescentar que muitas dessas batalhas dos anos 60 eram perdidas e os derrotados retornavam aos farrapos. O mundo mudava rapidamente, mas em Bobbio tudo parecia igual, tudo era sólido, talvez idealizado, com as pessoas que se conheciam todas entre si, as velhas casas, o rio e suas praias. No centro de tudo, as irmãs do cineasta, que foram envelhecendo, não tiveram marido ou filhos e se dedicaram exclusivamente a formar esse esteio familiar ao qual todos regressavam afinal. Irmãs Jamais é essa homenagem às mulheres que se sacrificaram.

Reflete uma atitude mais madura e menos radical do cineasta em relação à família. Ele, que vira a instituição familiar com olho para lá de ácido em De Punhos Cerrados, encontra agora certa doçura ao retratá-la em Irmãs Jamais.

A suavidade do tom não implica acomodação de um artista antes revolucionário. Quem acompanha sua obra sabe que Bellocchio não abandonou suas convicções políticas (de esquerda) e comportamentais (libertárias e ligadas a uma certa leitura da psicanálise). A experiência da idade faz Bellocchio buscar uma compreensão do mundo talvez mais serena e por certo mais complexa. As tias podem ser depositárias de valores antiquados, mas são adoráveis e por certo uma exceção de confiabilidade num mundo que parece a cada vez mais ameaçador à medida que se vai perdendo a dimensão da coisa pública.

Quando o espaço público reflui para o privado, então talvez seja hora de lançar um olhar menos desconfiado para os velhos valores das relações familiares, do afeto e da amizade. É tudo isso que simboliza a pequena Bobbio, em contraste com as ameaças da metrópole, como Milão, onde Sara tenta fazer carreira e Giorgio se enreda com tipos suspeitos. Bobbio é a paz, aquele porto amigo onde todos os parentes estarão juntos, mesmo que depois de mortos, como se diz num episódio tanto triste quanto irônico da compra de um túmulo de família.

Essa pequena joia é como um momento de repouso de um grande mestre. Mas, se sabe, os grandes mestres, mesmo quando descansam, produzem coisas extraordinárias. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.