A Espanha muçulmana conserva o brilho cultural que influenciou profundamente o Ocidente medieval e a Renascença, alterando também Gibraltar. De um continente a outro, dá para fazer a viagem que revive a idade de ouro árabe-andaluz.

SEVILHA
Trabalhando pela manhã, descansando depois do meio dia, turbulenta à noite, cristã nas suas igrejas, árabe nos seus jardins, cigana em muitos bairros, turística por escolha. É Sevilha vivendo ao longo das horas, oferecendo descobertas a cada virada de esquina, à sombra de um minarete, mudando conforme o olhar de quem passa. Turistas e locais não se cansam de admirar a beleza da cidade, o que é bem fácil de compreender.

O visitante acaba acreditando na frase quem não viu Sevilha, não viu maravilhas e assim preparado, se joga com curiosidade e exaltação no roteiro de ruelas da cidade andaluza, na procura do esplêndido passado muçulmano. No início até nem se dá muito conta do que está acontecendo com suas emoções. Mas aos poucos, se deixa imergir no ambiente, no ritmo de vida que foi marcado por séculos de dominação e presença moura.

É no início da manhã, quando Sevilha começa a sair do sono, se espreguiçando e agasalhando dos frios da noite, que dá para observar a encantadora desordem dos telhados em forma de terraços, grudados uns aos outros, no bairro de Santa Cruz.

Aqui e ali as sevilhanas começam as tarefas do dia, suspendendo as roupas lavadas no varal, regando as plantas, enquanto a família se concentra em torno do café da manhã, já aproveitando o frescor do sol que vai subindo no meio das árvores. São pequenos rituais matinais que se desenvolvem tendo como pano de fundo as decorações mouriscas do Alcazar, a torre-minarete junto da catedral, e as palmeiras que se destacam nas paredes ocre, os telhados vermelhos em harmonia com o branco do cal.

São partes da cidade que dão a sensação de se estar em um país árabe e a gente espera ouvir até o canto do muezzin. A herança oriental, tanto tempo escondida, fundadora da cultura andaluz, remonta à chegada em 711, perto de Tarifa, das diferentes etnias muçulmanas, dos árabes, berberes e outros criadores do Al-Andaluz. Expressão que designava a parte da península dominada pelos islâmicos, que deu origem à palavra Andaluzia.

Fotos: Divulgação

Cores e sabores, todos os dias na mesa

CAMINHOS
Nos caminhos de Córdoba, então brilhante capital dos Oméiades, cidade famosa por ser importante centro econômico e cultural, foi construída a primeira grande mesquita, depois Alcazar, lugar de residência dos governantes de Córdoba. O grande califado, em 1031, a fez capital dos mais poderosos taifas. Al Mutamid , rei poeta, dominava a corte de letrados e requintados intelectuais. Mais tarde foram os Almoravides que tomaram Sevilha, antes de serem expulsos pelos Almoades, em 1147.

Começava a idade de ouro, como capital do império almoade, cultivando a vida intelectual e artística, fascinando com seu brilho uma Europa medieval, grosseira. Durante as noites, as ruas de Sevilha eram iluminadas e seguras, enquanto em Paris a cidade não passava de um amontoado de gente pobre e bandidos que viviam na lama.

Sevilha passou a construir mansões e edifícios, destacando a grande mesquita, que mais tarde foi substituída pela catedral, depois da Reconquista. O palácio de Alcazar foi aumentado, os cais no rio Guadalquivir foram restaurados e um poderoso dispositivo de muralhas foi construído.

Em 1248, com a entrada na cidade do rei de Castilla Ferdinando III, acabou a dominação muçulmana em Sevilha. Com esse pouco de informação, dá para o turista se aventurar, seguindo o ritmo da cidade, flanando no traçado labiríntico das ruelas típicas do medina. Admirando os balcões floridos, a combinação de cores junto ao branco das casas, chegar até a pequena praça Doña Elvira, mergulhada no perfume dos jardins e das laranjeiras, sempre dando uma olhada nos portais cobertos de azulejos – outra herança árabe – do Callejón del Agua. Sempre caminhando, porque andar de carro seria uma loucura.

O bom é se deixar perder pelas belezas, até chegar junto da joia principal, a Catedral, que resume todos os brilhos de Sevilha. Primeiro é preciso visitar a Giralda. Não apenas pela fachada, decorada com tijolos formando desenhos com rara elegância. Com seus 97 metros de altura, foi a torre mais alta do mundo por muito tempo. Sua silhueta ficou famosa no planeta, uma espécie de torre Eiffel da Espanha.

Seu arquiteto, Ibn Baso, pretendeu, fazer dela a torre gêmea dos minaretes de Rabat na torre Hassan e da Marrakech, a Kutubiyya, verdadeiros símbolos da arquitetura almoade. Com seu pátio de abluções ( porta de los Naranjos) hoje é tudo o que existe da antiga grande mesquita de 1172, construída pelo califa Yacoub Youssouf. Uma verdadeira maravilha, que depois foi suplantada no século XV pela catedral gótica.

As 5 naves, as fileiras de colunas trabalhadas, as madeiras esculpidas, o excesso de ouro e prata nas capelas é quase uma provocação. Toda a dualidade da memória andaluza fica marcada nessa colisão de arquiteturas e nessa improvável fusão da cruz e da lua crescente. São destaques os vitrais do século XVI representando cenas do Antigo Testamento e o túmulo de Cristovão Colombo.


Do pão aos assados, a gastronomia espanhola tem raízes Al Andalus

ALCAZAR
Para conhecer a calma de viver que emana da arquitetura muçulmana, é preciso conhecer o palácio de Alcazar, uma síntese de tudo. Formado por uma sucessão de pátios retangulares, com canais e fontes, abrindo horizonte para salões suntuosos e sombreados, o palácio é a perfeição.

Os tetos de madeira inteiramente trabalhados e com pinturas, as paredes cobertas de azulejos, as colunas finamente decoradas, tudo foi construído há mais de um século depois da reunião de Andaluzia à Espanha. Isso porque apesar da reconquista, a arte muçulmana sempre agradou aos soberanos cristãos, sendo perpetuada com o nome de arte mudéjar. Um termo que significa submisso e que era aplicado aos muçulmanos autorizados a continuar vivendo no território reconquistado.

O mudéjar combina a arte muçulmana e o gosto cristão, em um estilo único e próprio da Espanha. São arabescos, arcos de vários raios, ruelas de pedras, marcando uma arte de viver que já esquecemos. Infelizmente. A única sala que sobreviveu do palácio almoade foi o pátio del Yeso. Com suas arcadas talhadas, detalhes em gesso, provando a sofisticação da dinastia almoade.

Todo o palácio é rodeado de jardins de grande beleza, com passagens secretas, palmeiras, pérgolas, conjuntos de flores, por onde brilham as gotas de fontes que se entrelaçam.

Outra manifestação de arte mudéjar é a Casa de Pilatos, uma residência da aristocracia que se transformou no símbolo da Renascença em Sevilha como um dos mais belos palácios da cidade. Seus arcos servem de moldura para estatuas romanas e gregas, destacando uma escultura de Atenas, do século V antes de Cristo. Uma escadaria em mármore cinza decorada com azulejos coloridos, leva até a sala decorada com afrescos da Renascença inspirados em poetas e imperadores da Antiguidade.

O teto e a mesa do salão para fumantes ao lado, é o ponto alto da marqueteria mudéjar. Puro encantamento para o visitante, antes de usar o tempo que resta do passeio para flanar pelos jardins, que têm alma italiana. O luxo em moda fazem surgir lugares poéticos, que até esquecem a outra face de Al-Andaluz. Que é a de todas as cidades perdidas no alto das colinas e montanhas, como construções militares, as plantações nos vales e as vilas brancas marcando a serra de Cadiz e as da Ronda.

É lá que estão as ruelas estreitas, as pequenas casas quadradas sempre pintadas de branco, as cercas de ferro preto, os gerânios vermelhos, tudo que lembra a medina. Junto da entrada de Pueblos Blancos, um rosário de cidades-fortalezas, desenvolvidas pelos muçulmanos: Arcos de la Frontera, suspensa no espaço. No alto de um despenhadeiro, com um castelo construído pela dinastia dos Bem Iazrum, ela domina as margens do rio Guadalate.

Além dos Arcos de la Frontera, a terra parece copiar o colorido africano, com valões na cor cobre, olivais e muita beleza por todos os cantos. Palmeiras e amontoados de cactos surgem aqui e ali. As cidades perdem os telhados, em troca dos terraços e o branco das paredes é mais intenso debaixo do sol. Todas as torres das igrejas são mais esbeltas, como nos minaretes que foram no passado.

Na medida em que se aproxima do oceano, a Europa fica mais distante. E o Marrocos é logo ali. Na extremidade da península, a partir de Algeciras ou de Tarifa, em dia claro, dá para ver Igrigiya, como se fosse do alto de uma varanda. A África, berço dos sábios árabes da corte de Cordoba, Sevilha e Granada, tradutores da herança de Aristóteles e outros grandes pensadores, é ligada todos os dias pelo ferry que conecta os dois continentes, separados por apenas 14 quilômetros.


A mesa é farta, forte e pronta para receber amigos

TANGER
Vista do mar, Tânger – a Branca – ,surge com suas paredes cor de neve, a alta casbah e os minaretes cobertos de cerâmica colorida, que tanto encantaram Pierre Loti, no tempo em que o francês fazia missão diplomática. Basta chegar lá para perder o sentido dos dias, dos meses, do ano, da época em que se vive. Basta sair do porto para alcançar as ruas e ruelas que, sendo estreitas para o táxi, vão obrigar a continuar o caminho a pé. O que é bom para apreciar as portas ricamente decoradas, os tetos em gesso esculpido, os velhos palácios e seus pátios e a multidão que se movimenta sem parar.

Concentrado nas descobertas, o turista perde o rumo. Mapas e referências vão sendo apagados e nem há orientação de que lado fica o mar ou o pequeno e o grande socco (mercado). Nos palácios, a sucessão de salas decoradas são como jóias, guardando alcovas, cúpulas consteladas de estrelas, arcos suportados por colunas, frisas de madeira esculpida como estalactites de uma gruta.

São sobreviventes artísticos que combinaram a arte muçulmana e a cristã, que o visitante encontra no antigo palácio Moulay Hafid, hoje palácio dos Institutos Italianos, com imensas salas e um belo jardim andaluz. A igreja St. Andrew, com campanário de base quadrada, foi construído como um minarete e é o exemplo mais singular dessa combinação de estilos. No interior o arco se abre para o coro e tem uma faixa com o Padre Nosso … gravado em árabe. Uma simbiose desconcertante para muitos, que reflete o movimento incessante de homens que partiram para a islamização da Espanha e fugiram, sete séculos depois, por causa da Reconquista. Uma era em que o pensamento e a criação artística tiveram seus melhores momentos. Veja em www.andalucia.org.


Hoje, como no passado, cada refeição é um ritual

ROTA DO CALIFA
O itinerário segue a estrada n. 432 que liga a base da Sierra Nevada ao vale do Guadalquivir. Principal eixo de comunicação da Andaluzia central desde a Antiguidade, é pontilhada de atalaya (torres de observação), de castelos, de cidades fortificadas que sempre lembram um passado cheio de tumultos e exércitos.

Depois da tomada de Córdoba em 1236 a rota foi o teatro, durante dois séculos, de enfrentamentos entre cristão e nasrides. Os reis católicos fizeram dela uma linha de front na estratégia ofensiva para derrotar o reino de Granada, até sua queda em 1492.

Foi essa rota que serviu de baliza para El Legado Andalusi, que tem marcos indicando as direções dos caminhos e das localidades e também os principais pontos de interesse de cada lugar.

VIAGEM FANTÁSTICA
A Espanha é um destino completo. Pela arquitetura, pelas influências de várias culturas, pela música, pela beleza da paisagem de montanhas e mesetas, pelos dois oceanos que a banham, pela arte de Velazquez, Goya, El Greco, Dali, Miró, Cervantes, Lorca e tantos outros.

E ainda tem como destaque a gastronomia, que guarda temperos da culinária árabe e suas especiarias perfumadas. E haja fatayer de carne ( uma espécie de esfiha grande assada na chapa); favas no azeite de oliva, limão e alho; faláfel, bolinhos de fava e grão de bico; e azeitonas, sorvete de rosas, coalhada, carneiro assado com arroz (fakhd kharouf w roz), trigo grosso com grão-de-bico e carne. Kafta ao forno (kafta b’sinye) e kafta no espeto (kafta michwye) não podem faltar. Também indispensável é a galinha recheada com arroz, ou cozida com trigo grosso e muitas especiarias.

E lentilha de todos as maneiras, principalmente com arroz e cebola torrada (mjadra), fattouch (salada de pão árabe com verduras). E tomates, berinjela com tahine, quibe na coalhada (labanye) ou quibe frito (mihlye). Também quibe de peixe ( quibet samak), ou quibe cru (naye) e de bandeja (b’sinye). Não falta o peixe com molho de tahine (samak tagen), a pasta de pimentão vermelho (mhamara) e claro, a pasta de grão-de-bico com tahine (hommus bi-tahine). Não esquecer também do feijão branco com carneiro (façouolia b’lahm). E experimentar um salmojero , sopa fria à base de pão, óleo de oliva, tomate, alho, pimentão vermelho, com fatias de ovos duros e pedaços de jamón. Os salmojeros mais sofisticados levam também grão-de-bico, tahine, manteiga clarificada, limão, amêndoas em lâminas e yoghurts. No outono o prato leva também grãos de granada. O ideal é provar a iguaria com uma colher de pau.


As marcas da cultura árabe estão em toda parte

O AZEITE E O VINHO
Tudo foi devidamente transformado, adaptado por muitas décadas de outras influências. O que é certo: a gastronomia espanhola é ímpar. Se o azeite espanhol é famoso, o óleo de oliva de Baena é famoso entre os espanhóis. Extraído das variedades de azeitonas picuda, junto com a carresquena, picual e hojiblanca, é proveniente exclusivamente dos férteis campos de Baena (a qanbaniya andaluza). Sob pressão nos almazara ( do árabe al-maysar – lugar de prensa), o azeite tem uma cor amarelo dourada, um pouco turva, com sabor doce e frutado.

Os vinhedos de denominação de origem, ao sul de Córdoba, são dos mais cotados da Andaluzia. As uvas são colhidas precocemente em agosto e o mosto é extraído com método tradicional, na prensa. Obtidos segundo o processo de crianza ou criação, os vinhos são combinados com outros mais antigos, o que garante uma qualidade constante. Conforme o prato escolhido, frio ou quente, a escolha será para um Amontillado entre 16 a 20º , com sua bonita cor de ouro velho, que é recomendado para acompanhar sopas e consommés, ou um Fino, 14º , seco e ligeiramente amargo, para acompanhar tapas e frutos do mar.