Depois de matar boa parte dos recursos que favoreciam a narrativa das novelas — vide o telefone celular, que dificulta os desencontros necessários a um folhetim, e o exame de DNA, que reduziu as intermináveis suspeitas sobre paternidade —, a parceria entre tecnologia e ciência finalmente promove um prato cheio para o gênero. Com uma geração já adulta nascida com a doação de sêmen, Sete Vidas, a próxima novela das 6 da Globo, se abastece das infinitas possibilidades de encontros e desencontros criadas por esse novo contexto de relações.

É a segunda novela de Lícia Manzo — a primeira foi A Vida da Gente, um sucesso de exportações da Globo — de novo com direção de Jayme Monjardim. O repertório tem todas as condições de comover a plateia. Há a busca dos laços sanguíneos desconhecidos e, claro, os romances entre possíveis irmãos, um clássico do folhetim, agora revisto por outros caminhos, nas vozes de Isabelle Drummond e Jayme Matarazzo.

É Domingos Montagner, o Miguel, um navegador disposto a zelar pela solidão, quem alinhava todas as pontas da trama. Avesso a relações afetivas, Miguel programa uma expedição à Antártica para se refugiar de sua amada (Débora Bloch). A sequência foi toda gravada na Patagônia Argentina, com toda a infraestrutura padrão Globo. Seu barco bate num iceberg, e, como isso não é Titanic, ele perde a memória e é dado como morto, mas reaparece um ano depois. Ao chegar em casa, toma conhecimento de seis dos sete filhos que justificam o título da história. Esse cara volta, ele não quer se identificar, porque ele não quer nada que remeta a família, e ele se aparta da família, ao contrário dos irmãos que se procuram.

Na vida real, meios-irmãos têm se encontrado mundo afora, graças à internet, outra nobre contribuição da tecnologia ao enredo. São sites como o Donor Sibling Registry, que, com base no número do doador e no nome da clínica, permitem que alguém gerado pela doação de sêmen procure outros frutos do mesmo doador.

Dessa cruzada online começaram a surgir grupos de até cem pessoas, conta Lícia, que vem estudando o assunto há pelo menos quatro anos, por meio de documentários e investigações em sites e clínicas. Na verdade, existiria, a priori, um controle sobre isso, mas esse controle já foi para o espaço, mesmo em termos de Brasil, porque é um comércio.


MONJARDIM DIZ QUE PRIORIZA O TEXTO
Diretor de duas das novelas recentes mais exportadas pela Globo — A Vida da Gente, também de Lícia Manzo, e Flor do Caribe, de Walther Negrão — Jayme Monjardim credita ao texto a condição de protagonista na novela que vem aí Para ele, autores como Lícia e Manoel Carlos, de quem dirigiu as últimas produções, pedem discrição a todos os demais setores, da cenografia ao figurino e à própria direção, para fazer valer a máxima de que menos é mais. Sob um sol de 38 graus, enquanto gravava cenas com Isabelle Drummond na Praia do Arpoador, no Rio, Monjardim conversou com o Estado.

O foco da novela é um prato cheio para folhetim, não?
Jayme Monjardim — É uma coisa muito nova porque ninguém imagina, na vida, um cara como eu, de 58 anos, ou de 35 pra frente, que de repente pode aparecer na sua porta, se eu fui doador quando eu tinha 20 anos, 15 filhos. E encontrar seus irmãos só é possível com esse fenômeno, que é a internet. As pessoas, em questão de um click, ficam sabendo de tudo o que acontece no planeta. O cara agora transmite ao vivo, de qualquer país do mundo, diretamente do celular, ou Facetime.

Como esse assunto pode provocar o espectador?
Monjardim — Para mim, isso tem o mesmo impacto que teve O Clone. Acho que as pessoas ainda não tomaram ciência do que está acontecendo. Estou muito esperançoso de que esse tema vá mexer muito com as pessoas e é contado de uma maneira muito bonita. A história é linda. Tenho tentado produzir, paralelamente à novela, o mesmo assunto, real, para alguma coisa estendida à internet. A ideia é discutir na internet todo esse processo com personagens verdadeiros, doadores, irmãos que se encontraram. A ideia é conjugar isso com Fantástico, Profissão Repórter, já que é um assunto tão novo. Terminando a novela, você tem condições de saber mais na internet.

De que forma isso afeta a estética de uma novela?
Monjardim — Acho que a estética não muda, é centenária. O que acho legal é que, à medida que a gente vai avançando, a tecnologia nos permite, com menos, fazer mais. Com pequenas câmeras você entra em lugares que antes precisaria de uma big estrutura. Hoje, tem câmeras pequenininhas, como a Go Pró 4, que é 4K, que dá pra brincar com ela na mão e entrar debaixo d’água. A tecnologia vai facilitar que se conte história da maneira mais ousada, ou cada vez mais realista. O que era muito grande se torna pequenininho, com qualidade. Eu viajei para a Patagônia, com as Go Pró 4: bota na frente do barco e faz planos incríveis.

Menos é mais…
Monjardim — Quando você tem um texto muito humano, muito realista, não pode firular muito. Nesta novela, eu comecei fazendo um carrinho lindo e tal, mas quando fui ver, não estava de acordo com a cena. A cena pede que você seja objetivo, que estabeleça um contato imediato com o texto. Acho que novelas como as do Manoel Carlos, da Lícia, essa gleba de autores que trabalham muito o dia a dia, muito naturalismo, têm essa diferença: não são novelas em que se enfeita muito, o protagonista da novela é o texto mesmo.

E a vaidade do diretor fica…
Monjardim — Não acho que diretor tenha vaidades. Quando você tem um texto dessa natureza, é muito difícil firular ou ter vaidade, porque o seu sucesso está muito no sucesso da obra e você não vai querer botar na frente os seus desejos ou delírios pessoais como diretor, passar por cima da obra, porque a obra não vai ser tão elogiada como seria se você não aparecer. Em obras como da Lícia, não podem aparecer direção, figurino, não pode aparecer a arte, a luz. Tem que aparecer a história, nada pode destoar. Esse é o segredo: fazer menos ficar mais. Mas é difícil. Aqui eu trabalho com dois diretores, um diretor sempre comigo, para um ficar analisando o outro. Porque a tendência, realmente, é se entusiasmar um pouco. Na Patagônia, com aquelas imagens fantásticas, dá entusiasmo, mas tem que botar o pé no chão e contar a história.

Mas também motiva a direção de ator, não?
Monjardim — Novela é só direção de ator. Não existe novela sem direção de ator. O diretor é diretor de ator, não é diretor de imagem, diretor de imagem é outra coisa.


PARA A AUTORA LICIA MANZO, ARTE IMITA A CIÊNCIA
A autora Licia Manzo cita um documentário inglês sobre meios-irmãos americanos e o reality show Geração In Vitro, da MTV, de 2013. É maravilhoso: são 10 meios-irmãos que se localizam. O que mais me tocou nesse grupo de jovens foi a vontade de se pertencerem, de conexão, de se conhecerem, de se receberem uns aos outros na vida e como meios-irmãos, com backgrounds familiares, financeiros, às vezes religiosos totalmente diferentes. Talvez até para encontrar um igual, porque eles vivem, de alguma forma estigmatizados, e, de repente, encontram um bando na mesma situação.

Não é difícil imaginar que muita gente busca características que considera ideais em um doador, o que motiva a procura maior por determinados pais. É uma situação muito controversa, afirma Lícia Manzo, a autora do folhetim, porque tem esse lado da afetividade, que é muito bonito de ver, muito tocante, mas tem um lado aí do comércio, que preocupa.

A ideia da novela nasceu logo após o fim de A Vida da Gente, quando Lícia e o diretor Jayme Monjardim, satisfeitos com a parceria, conversaram sobre um próximo trabalho. Havia dois temas: uma vontade de falar sobre a Antártica, ou sobre um navegador que vai à Antártica. O outro sobre isso, sobre meios-irmãos, gerados via doação de sêmen, que hoje já existe no mundo uma geração adulta, diz.


RÁPIDA

Tramas paralelas
Com 107 capítulos e 35 atores no elenco, Sete Vidas endossa a tendência de enredos mais curtos no horário das 18 da Globo. Os assuntos paralelos ao foco central são igualmente contemporâneos e comportamentais, abraçam relações humanas, despindo uma série de mudanças operadas no nosso tempo. Malu Gali, por exemplo, é uma publicitária muito bem-sucedida, que passou dos 40 anos e vem adiando o sonho da maternidade, em prol da carreira. Outro tema abordado em cena é a geração canguru, assim batizada por aquele filho que já chegou aos 40 anos e ainda não abandonou o teto de papai e mamãe. O folhetim toca ainda na questão da mulher madura que perdeu o apetite sexual e a autoestima, o que é traduzido muito mais por um olhar brasileiro.