O nível da Cantareira subiu a ponto de ficar para transbordar em uma tarde de segunda-feira. Seria um fenômeno bíblico, da seca à inundação, do volume morto aos decibéis mais cristalinos em poucos minutos. E tudo começando em algum ponto de intersecção entre os violões e as vozes de Renato Teixeira e seu filho Chico, entre o rock rural de Zé Geraldo e a filha Nô Stopa.

Há bem mais na Cantareira do que um reservatório em agonia. Música, por exemplo. A pedido da reportagem do jornal O Estado de S.Paulo, alguns de seus moradores ilustres se encontraram na casa de Renato para uma sessão acústica – da qual o portal do Estadão publica duas músicas – e três dedos de prosa. Uma semana depois, a prosa cresceu quando a reportagem voltou a falar com Renato Teixeira por telefone: “Estamos criando um movimento aqui chamado Folk na Serra”, revelou.

A iniciativa de Renato consiste em agrupar músicos de todo o País que se enquadrem no amplo conceito do folk, com o pré-requisito de fazerem boas canções que tragam o espírito caipira na alma. Os projetos serão definidos a partir de reuniões e cantorias na casa do compositor e a Cantareira, hoje destaque diário nos jornais como sinônimo de alerta e escassez, irradiaria a nova cena. “Eu já estou negociando com gravadoras para o lançamento de alguns trabalhos. Já começam a chegar, além da Nô Stopa e do Chico Teixeira, o João Carreiro e o grupo Folk na Kombi. O projeto está caminhando”.

O selo de folk é o mesmo da música caipira que Renato habilmente reetiqueta para baixar guardas levantadas por conceitos mais gramaticais do que estéticos. Desde Romaria ele faz isso, quando envolveu a então negligenciada tradição sertaneja com o manto da então sagrada MPB. Elis Regina a gravou em 1977 e trouxe à tona não só Renato mas todo um universo esquecido. Seu vizinho, Zé Geraldo, faz o mesmo há décadas, colocando canções caipiras na boca de roqueiros que abandonam preconceitos ao sentirem-se diante de seu próprio Bob Dylan. E, a duas colinas adiante, Almir Sater soa com seu sofisticado “folk das guarânias”.

As montanhas da Cantareira, um território a apenas 20 quilômetros do Centro de São Paulo, com bichos-preguiça, quatis e mais de 200 espécies de aves, tem mudas de viola e colheita de canções desde que os Mutantes resolveram habitar suas terras, nos anos 70. Depois deles, seguiram para o sonho da casa no campo, mas nem tão longe do asfalto assim, Elis Regina, Antonio Marcos, Vanusa, Sérgio Reis.

As famílias de Renato Teixeira e Almir Sater se frequentam há tempos, mas só agora fazem um trabalho juntos, uma dívida que a proximidade lhes cobrava. O álbum, com produção do norte-americano Eric Silver, está sendo gravado no Brasil e em Nashville. É definido em linhas gerais por Renato como “um passo à frente” e por fontes que já ouviram algo como um trabalho “progressivo”. O lançamento, sem data, será neste ano.

Nô Stopa, com o folk do pai Zé Geraldo correndo junto com o rock das garagens de Pirituba, não é uma moradora da Cantareira mas conhece bem suas trilhas. Está em ensaios para em breve entrar em estúdio e gravar seu terceiro álbum, Manifesto Poesia, o primeiro com patrocínio público, produzido por Fernando Anitelli, do Teatro Mágico, e amparado pelos músicos Gustavo Souza (bateria), Sérgio Carvalho (baixo), Zeca Loureiro (guitarra) e Guilherme Ribeiro (teclado).

Zé Geraldo já tem metade de seu próximo disco gravado. Uma das canções, Os Dois Reis Magos, pergunta por um outro homem que estaria fácil entre os folkistas da Serra se não tivesse deitado o cabelo no mundo: “Nosso trio virou dupla / o verso ficou menor / Nos valha Jesus menino / onde anda Belchior?” E Sérgio Reis, outro cantareiro que divide dias na mata com semanas nos concretos de Brasília, onde exerce sua recente condição de deputado federal, tem um projeto para gravar as canções de outros dois folk stars natos: Luiz Gonzaga e Dominguinhos.

DE ELIS A XAVANTINHO
Renato Teixeira nasceu em Santos, no estado de São Paulo, em 20 de maio de 1945. Passou a infância em Ubatuba/SP, e a adolescência no interior do estado. Depois mudou-se para Taubaté, no Vale do Paraíba. Na capital paulista, participou do Festival da Record de 1967 com a música Dadá Maria que foi defendida por Gal Costa (na época ainda Maria da Graça), e também por Sílvio César. Também foi sua primeira gravação, já que Renato Teixeira gravou a respectiva música juntamente com Gal no disco do festival. E, no mesmo festival, no ano seguinte, Roberto Carlos foi o intérprete de Madrasta também de sua autoria.

Renato sempre procurou conhecer a história musical de nosso país, ouvir todas as canções e todos os gêneros, do samba à música caipira. A geração musical que frutificou da bossa nova, nos anos sessenta era chocante. Uma linda síntese de tudo que aconteceu de essencial na música brasileira até então.

Admirador e também amigo de Chico Buarque e Caetano Veloso, Renato Teixeira também conheceu Milton Nascimento antes dele fazer sucesso; segundo ele, todos que o conheceram nessa época, já tinham por ele uma admiração que só os grandes mitos podem desfrutar. A falecida Elis Regina, também estava entre os intérpretes da MPB mais admirados por Renato que também assistiu bem de perto ao surgimento do tropicalismo, uma espécie de preparação mental para a chegada do terceiro milênio.

Jingles publicitários também compôs para sobreviver, e que fizeram bastante sucesso como aqueles do Ortopé.

Em parceria com Sérgio Mineiro, criou o Grupo Água com o qual Renato Teixeira conseguiu assimilar o espírito da música caipira e projetá-la de uma forma contemporânea para todo o Brasil. Até que em 1977, por insistência do filho ainda pequeno Pedro Camargo Mariano, a saudosa Elis Regina gravou Romaria e convidou o Grupo Água para acompanhá-la na gravação. Tal sucesso mudou a carreira de Renato Teixeira e estava criado um novo espaço para que a música do interior paulista invadisse o mercado. Com seu famoso refrão, Romaria de Renato Teixeira abriu as porteiras de um universo. Além de Elis Regina, muitos outros já gravaram Romaria, como por exemplo, Pedro Bento e Zé da Estrada, Pena Branca e Xavantinho, Sérgio Reis, Passoca e muitos outros intérpretes.

Um grande momento na vida de Renato Teixeira foi também a parceria com Almir Sater, com alguns sucessos consagrados, como por exemplo, Um Violeiro Toca e Tocando em Frente.

Outra parceria importante para Renato Teixeira foi com a dupla Pena Branca e Xavantinho. Juntos, gravaram o CD Ao Vivo em Tatuí, produzido por Mário de Aratanha e Leo Stinghen.

Além de Pena Branca e Xavantinho, Renato Teixeira também gravou discos juntamente com Xangai, Cida Moreira, Elomar, Geraldo Azevedo, Sivuca e muitas outros.