ISABEL FLECK
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O posicionamento nebuloso da Turquia sobre o Estado Islâmico (EI) na vizinha Síria se explica pelo fato de o governo de Recep Tayyip Erdogan considerar a facção radical “menos perigosa” do que o regime de Bashar al-Assad. A avaliação é do jornalista turco Cengiz Çandar, colunista do “Radikal”, de Istambul, e do “Al Monitor”, jornal digital americano no Oriente Médio.
“As autoridades turcas não veem o EI como mais perigoso que o regime sírio”, disse Çandar, em evento realizado na noite de quinta (21) na Fundação Fernando Henrique Cardoso, em São Paulo. “A posição turca é contra o EI, mas o alvo mais importante é o regime sírio. E como o EI é um produto desse regime, se o regime cai, o EI desaparece.”
Segundo o jornalista, especialista em Oriente Médio, o governo turco não ataca diretamente o EI por temer que haja células adormecidas da facção na Turquia. Uma reportagem recente do “The New York Times”, contudo, mostra que não só a Turquia não tem lutado contra a milícia como viria facilitando a entrada, no território sírio dominado pelo EI, de fertilizantes que podem ser usados em explosivos.
Çandar lembra que os governos de Síria a Turquia eram muito próximos até o início da Primavera Árabe (2011), quando o governo de Erdogan “começou a fazer cálculos de que o regime sírio não ia durar”. “A Turquia fez uma aposta de que Bashar [al-Assad] sairia, e então a Turquia não só hospedou como também formou a oposição síria dentro de seu território”, disse. “Mas o regime ficou, graças ao apoio do Irã e da Rússia.”
O surgimento do EI teria sido visto pelas autoridades turcas, então, como parte de “uma reação sunita às forças xiitas e alauitas lutando por poder na região”, segundo o jornalista. Para ele, foi um erro de avaliação que pode comprometer agora a segurança da Turquia.
“É claro que tem essa dimensão sectária: os iranianos odeiam o EI, o EI odeia os iranianos; o EI odeia os iraquianos xiitas, e os xiitas iraquianos têm medo do EI. Mas o EI não é um produto da reação sunita contra os xiitas. A ideologia que o Estado Islâmico carrega existe há séculos”, afirma.
“Eles não estão lutando apenas contra os xiitas, mas contra qualquer um que seja contra suas leis ou que os conteste -e, nisso, constituem uma ameaça também à Turquia”, diz, observando que o EI pode se infiltrar no país, onde mais de 95% da população é muçulmana -72% deles são sunitas.
AUTORITARISMO
Çandar e o também jornalista Hasan Cemal não pouparam críticas ao autoritarismo do presidente Recep Tayyip Erdogan, que foi também premiê entre 2003 e 2014.
“Ele está levando a Turquia na direção do que ele chama de ‘sistema presidencial’, mas não tem respeito pelas leis, pela independência do Judiciário, não reconhece a separação entre os poderes e acredita que democracia significa apenas ter a maioria nas urnas”, disse Cemal.
“Erdogan é o homem que poderia ter colocado a Turquia no grupo das democracias, mas que está fazendo o país retroceder”, completou.
O cerco à imprensa é um dos pontos mais sensíveis hoje, segundo os jornalistas. Cemal citou o caso da jornalista Sedef Kabas, condenada no início deste ano a cinco anos de prisão após escrever um tuíte em que citava o nome de um juiz responsável por arquivar um caso de corrupção envolvendo filhos de ex-ministros para exemplificar a censura imposta pelo governo Erdogan hoje.
O jornalista, que deixou o jornal “Milliyet” em 2013 após ter sido “suspenso” ao publicar um artigo criticado por Erdogan, disse preferir “não pensar” sobre os riscos que corre na profissão para poder seguir trabalhando.
“Continuo escrevendo. Fui demitido de um jornal, mas continuo escrevendo para um site. E, bem, estou vivendo”, afirmou.
Çandar, contudo, se mostra mais preocupado. “Ninguém pode estar certo de sua própria segurança. Essa é a nossa realidade.”