RUBENS VALENTE
BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – A subprocuradora-geral da República Deborah Duprat, da PGR (Procuradoria-Geral da República), disse nesta semana que a Câmara dos Deputados é hostil à presença de indígenas e quilombolas que vão ao Congresso para acompanhar discussões sobre iniciativas, como a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) 215, que atingem essas comunidades.
“Os indígenas são recebidos nessa Casa com tropa de choque com forte aparato policial, com revista e retenção de seus instrumentos ritualísticos. A Convenção 169 da OIT [Organização Internacional do Trabalho] determina que antes de qualquer medida legislativa que impacte os povos indígenas, eles sejam ouvidos”, disse Duprat.
“No entanto, não se permite o ingresso dos povos indígenas nas diversas comissões onde se discutem os inúmeros projetos de lei que dizem respeito aos seus interesses. É a mesma coisa sobre os quilombolas. É uma Casa hostil a esse segmento da sociedade”, completou.
Duprat participou de audiência pública na Câmara convocada para debater a PEC, que estende ao Legislativo a decisão sobre demarcação de terras indígenas em todo o país, papel até aqui atribuído ao Executivo. A PEC está em discussão em uma comissão especial da Câmara dos Deputados.
Segundo Claudecir Vicente, índio terena de Aquidauana (MS), um grupo de 53 indígenas foi barrado na entrada da Câmara e só liberado após 20 minutos de negociação. Eles tiveram que deixar na portaria uma flecha e duas bordunas. Em dezembro passado, um grupo de seguranças da Casa, policiais militares e indígenas que protestavam contra a PEC entrou em conflito. Quatro índios são acusados pelo Ministério Público de tentativa de homicídio por uma flechada na bota de um PM.
Uma das principais lideranças indígenas do país, Sônia Guajajara relatou: “Sempre nos olham com olhar de medo, de discriminação. Na hora em que se diz que vai entrar índio nessa Casa, já se forma um cordão de isolamento. É difícil entender que casa do povo é essa”.
Um grupo de cerca de 50 índios guaranis e terenas entrou e acompanhou o debate no plenário do Anexo II. “Quem faz essa PEC sem consultar o índio está fazendo uma peste, só para causa sofrimento para nós, [que estamos] andando para lá e para cá”, disse Adauto, líder guarani-kaiowá.
O novo presidente da ANPR (Associação Nacional dos Procuradores da República), José Robalinho Cavalcante, também atacou a PEC.
‘EQUÍVOCO’
“Por maior respeito que a ANPR tem pelo Congresso, é uma matéria simplesmente incabível. É um equívoco politico, um equívoco jurídico, e um atentado aos direitos indígenas que estão na Constituição. Trago a solidariedade integral e a força de luta de todos os procuradores da República pela causa dos povos indígenas e a luta contra essa proposta que está em discussão no Congresso”, disse Robalinho.
Márcio Santilli, do ISA (Instituto Socioambiental) e ex-presidente da Funai (Fundação Nacional do Índio), disse que um levantamento realizado pela ONG de São Paulo indicou que a PEC, se aprovada, vai impactar de imediato 227 terras indígenas em fase de identificação ou que já foram identificadas com portaria do Ministério da Justiça mas ainda sem o decreto de homologação da presidente Dilma Rousseff.
Segundo Santilli, cerca de 100 mil indígenas seriam afetados, num total de 7,7 milhões de hectares, e os efeitos também se estenderiam a todas as outras 698 terras indígenas já homologadas, agora sob “o risco de sofrerem algum tipo de intervenção no sentido de redução de suas terras”.
“A discussão que se trava no âmbito de uma comissão especial é orientada por uma abordagem genérica, um discurso e uma retórica de palanque eleitoral. Uma discussão absolutamente desinformada sobre o que significam esses dispostivos da Constituição que se pretende modificar de uma forma ligeira e irresponsável”, disse Santilli.
Ex-deputado federal, Santilli disse que o Congresso não está preparado para dar vazão a “centenas ou milhares” de processos de demarcação que dependerão de sua apreciação, se a PEC for aprovada, o que levará a uma paralisia de todos os casos.
Cleber Buzatto, secretário-geral do Cimi (Conselho Indigenista Missionário), vinculado à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), disse que a PEC não é a única ameaça aos direitos indígenas, mencionando três decisões recentes da 2ª Turma do STF (Supremo Tribunal Federal) que consideraram que indígenas não têm mais direito a reivindicar terras nas quais não ocupavam ou não reivindicavam por meio judicial antes de outubro de 1988, mês da promulgação da Constituição.
“Essas decisões têm caráter profundamente político e significam traição à Constituição, aos parlamentares constituintes e aos povos originários que conquisaram seu direito com muita luta, muito suor e muito sangue”, disse Buzatto.
O presidente da ABA (Associação Brasileira de Antropologia), Antonio Carlos de Souza Lima, disse que a PEC coloca em risco sobrevivência de etnias.
“O direito dessas comunidades à demarcação significa reconhecimento da sua relação vital com seu território. É uma questão de vida. A vida não se negocia. A PEC 215 e outros diplomas trazem direitos, que são originários, para o terreno da negociação, da barganha. A vida não é matéria de barganha. A ABA continuará militando contra”, disse o antropólogo.
CLIMA CONTRÁRIO
Na audiência, a deputada federal Erika Kokay (PT-DF), que presidiu o evento, disse que o clima na comissão especial é contrário aos indígenas. “O que se diz é que ‘basta dar um alimento, basta dar uma cesta básica’ que o índio está contemplado”, afirmou a parlamentar.
Representando a comissão de direitos humanos do Senado, o senador João Capiberibe (PSB-AP) disse que a pauta atual de votação na Câmara “é exclusiva de alguns grupos da sociedade, grupos corporativos, religiosos, que estão se sobrepondo ao conjunto da sociedade brasileira”.
“Acho que essa proposta [PEC 215] não vai passar na Câmara. Mas, caso isso venha acontecer, no Senado estamos preparados para dar a resposta”, afirmou o senador.
As ONGs e parlamentares criaram um comitê de defesa dos direitos indígenas e prometem aumentar a mobilização contra PEC. Também declararam apoio a Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho), OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Associação dos Juízes pela Democracia e parlamentares de PSOL, PT e PSB.