ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Ao organizar o recém-lançado “Abstract/Ext”, o espanhol David Quiles Guilló, 42, quis provocar danos na literatura. Típico do “sociopata cultural” que ele é.
“Sociopata cultural” porque, como o próprio define, “não sente culpa nem se arrepende de atos que atentem contra o establishment artístico”.
Por danos, não entenda algo necessariamente negativo. A palavra pode ser entendida como “impulsora de mudanças”, diz o autor, editor e “leitor psíquico” da editora independente Abstract Editions.
“A tecnologia tem sido danosa à comunicação interpessoal, linear, com muitas pessoas ao mesmo tempo se falando via WhatsApp, Facebook, Twitter… Tudo isso faz com que o discurso se frature cada vez mais.”
Se hoje diálogos se esburacam feito queijo suíço, Guilló sugere que não o preenchamos com significados pré-estabelecidos. Daí surgiu sua “literatura abstrata”, espelhada no movimento irmão das artes plásticas -do impressionismo de Jackson Pollock aos pôsteres psicodélicos dos anos 1960.
A filosofia é esta: “As palavras não têm a obrigação de contar uma história, de descrever personagem, paisagem, sentimento. Elas podem fluir livremente e gerar um sentido apenas em quem as lê, baseado em seu background literário ou de vida”.
“Deixem as palavras serem livres”, resume o manifesto cunhado por ele.
Daí vem sentenças como estas a seguir, escritas por Guilló, na versão original em inglês e na traduzida a duras penas pela repórter:
“It starts with a whole yeah hey oh cool yeah that goes as high hole and then down to home as we come back we can go with you to see them the same, we changed, them all remain same but different.”
(“Começa com todo um sim ei ó legal sim que vai feito buraco alto e então volta para casa enquanto nós voltamos nós podemos ir com você para vê-los o mesmo , nós mudamos , eles todos permanecem igual, mas diferente.”)
São trechos de “Abstract/Ext”, livro que reúne 45 autores internacionais, que responderam a uma convocatória pública feita por Facebook (à venda no http://abstracteditions.org, por 45 euros, em torno de R$ 153).
A obra corporaliza em 240 páginas o “Manifesto da Literatura Abstrata” proposto por Guilló: primeiro conheça as regras literárias, para então expulsá-las de sua zona de conforto.
“Molde textos randomicamente num formato reconhecível para a leitura: prosa comum ou trabalhos poéticos. Nenhum experimento gráfico, poesia concreta serão permitidos. Sirva-se de gramática e sintaxe conhecidas como seu playground”, diz o texto.
O SALVO-CONDUTO DE GUIMARÃES
Um brasileiro seguiu esse chamado: Carlos Issa, músico e artista visual paulistano, autor de zines como “Volvo” e “Full Sociedade”, lançados na Feira Plana 2015.
Ele escreve “Urbe Novata”, aglomerado de ideias “que se formam ansiosamente na minha cabeça”. O texto é em inglês, com uma ou outra intervenção em português, com termos como “aparapêndulos”, “afetomáquinas” e “aracnodata visútil”.
“Eles vêm dessa mania doentia que tenho de colar palavras umas nas outras, no pensamento”, diz. Tamanha bricolagem cognitiva é, para ele, “um desrespeito respeitoso que tenho pela literatura de modo geral”.
João Cabral de Melo Neto (1920-1999), Clarice Lispector (1920-1977) e Guimarães Rosa (1908-1967) eram amigos da família de Issa, filho de romancista. “Tenho duas cartas do Guimarães escritas pro meu avô. Manuseio essas cartas como amuletos e meio que me permito, com esse salvo-conduto vindo de um legítimo inventor, a fazer o que quiser com as palavras.”
Para Issa, o autor de “Grande Sertão: Veredas” integra as “vanguardas repletas de textos estranhos”. Cita o “Manifesto Futurista”, com ressalva: “Eles são aqueles fascistas, sempre fica esse incômodo”. Lembra de James Joyce, que falava em palavras-valises, da poesia de E.E. Cummings, sua influência maior, e da língua criada por George Orwell em “1984”.
“A ‘novilíngua’ descreve esse efeito que o Antonio Negri enxerga hoje na máquina midiática que tenta diminuir o espectro do vocabulário, fazendo mesmo as pessoas expostas aos canais de massa praticamente balbuciarem.”