RAQUEL COZER, ENVIADA ESPECIAL
PARATY, RIO (FOLHAPRESS) – As histórias Mário de Andrade em sua “Londres das neblinas frias”, como o modernista definia a São Paulo onde nasceu e viveu, lotaram a Tenda dos Autores na tarde desta sexta (3), na mesa que reuniu o jornalista Roberto Pompeu de Toledo e o crítico e ensaísta Carlos Augusto Calil.
Pompeu, “biógrafo” da capital paulista, e Calil, curador da exposição permanente da Casa de Mário de Andrade, em São Paulo, deram praticamente uma aula sobre o homenageado desta edição da Flip, “homem grande, de 1,83, mulato claro, que era muito feio e tinha consciência dessa feiúra desde muito menino”, como definiu Calil.
Mais centrado na relação de Mário com a cidade, Pompeu lembrou o rompante que levou o modernista a usar pela primeira vez “Pauliceia Desvairada”, nome que seria dado a seu livro de poemas de 1922.
“Ele comprou uma cabeça de Cristo do Brecheret, com trancinhas caindo na face, e chegou em casa entusiasmado. A família ficou escandalizada, achou de mau gosto. Aquilo provocou uma briga. Ele, irritado, recolheu-se ao quarto, abriu a janela e desabafou: ‘Pauliceia desvairada!’. Veio de um momento de irritação e virou título do livro que inaugurou o modernismo literário.”
Assim como Pompeu, Calil lembrou vários causos envolvendo o escritor, como quando Oswald de Andrade, colega de modernismo, amigo e depois desafeto de Mário, se referiu a ele como “meu poeta futurista”.
“Aquilo causa um escândalo enorme na cidadezinha provinciana despreparada que era São Paulo, e Mário ganha fama de maluco. Tem que explicar o que é futurista, e que ele não era. Perde alunos [nas aulas de piano] porque os pais não queriam entregar o filho a um professor publicamente maluco.”
Nessa cidade “provinciana, conservadora e previsível”, os dois Andrade se destacaram, Oswald pelo tipo de “brilho que faísca”, Mário pela
profundidade, com brilho de “bronze brunido”.
“Mário quando dizia era com conhecimento de causa, e Oswald era mais leviano intelectualmente, seduzia nos salões, fazia piadas”, disse Calil, lembrando que o “Eu menti” que o herói sem nenhum caráter diz a certa altura do romance “Macunaíma” é uma referência de Mário a Oswald, que certa feita admitira ter inventando que o amigo falara mal de Villa-Lobos.
Questionados pelo mediador João Gabriel de Lima sobre os mecenas que na época estimularam a vida cultural de São Paulo, se eram mais generosos que os representantes da elite de hoje nesse sentido, Pompeu preferiu não fazer a comparação.
“O que sei é que há rasgos de generosidade nesse período, especialmente em relação a São Paulo”, diz, citando casos como a USP, “que nasceu dentro da Redação do jornal ‘Estado de S. Paulo'”, o Masp, criado por Assis Chateaubriand, e o MAM, a Bienal e o TBC, por Ciccillo Matarazzo.
A dupla comentou também o rompimento de Mário com Oswald, em 1929, depois que este começou a se referir àquele de maneira irônica, como dizendo que “parece o Oscar Wilde de costas”.
Pompeu lembrou a carta de 1928 para Manuel Bandeira recém-divulgada, após décadas lacrada na Casa de Rui Barbosa, em que Mário trata dos comentários em torno de sua homossexualidade. Para ele, a maior novidade da missiva é o fato de que um certo X a quem ele se referia, na versão da carta publicada por Bandeira, era Oswald.
“Ele fala ‘não é que eu não seja amigo dele, ele é que não é meu amigo’. E a gente sabe que, depois do rompimento definitivo, um ano depois, foi Mário quem terminantemente se afastou”, disse o jornalista.
Ao final, questionado por alguém do público sobre o que Mário diria se soubesse, como publicou um site, que os livros dele desbancaram os de colorir nos mais vendidos do estande da livraria Travessa durante a Flip, em Paraty, Calil respondeu: “Talvez ele achasse que fosse necessário para a conquista da espiritualidade”.