RAQUEL COZER, ENVIADA ESPECIAL
PARATY, RJ (FOLHAPRESS) – “Os críticos literários hoje são mais especializados, não é preciso que lavem a roupa pela manhã, preparem o almoço ao meio-dia e limpem a casa à tarde”, disse a ensaísta argentina Beatriz Sarlo, na tarde deste sábado (4), ao responder a um questionamento sobre por que os estudiosos de literatura de hoje se envolvem menos na política do que há 30 ou 40 anos.
A questão fora levantada pela jornalista Sylvia Colombo, repórter especial da Folha de S.Paulo, durante a mesa “O Papel da Crítica Literária em Tempos de Internet”, na Casa Folha. Colombo lembrara a participação de Sarlo na revista literária “Punto de Vista”, criada em 1978, com forte atuação na área política, e que circulou até 2008.
“Eu era muito jovem quando comecei. Quando a revista acabou, eu era outra pessoa. De lá para cá, os intelectuais se especializaram. Minha geração era de intelectuais ‘todo terreno’, como aqueles carros que podem andar na montanha, na cidade, no barro, na água. Hoje não é preciso que um faça tudo, muitos podem fazer coisas diferentes”, concluiu a ensaísta.
Como boa representante dessa geração “todo terreno”, Sarlo respondeu com propriedade a questões sobre o papa Francisco, a relação da presidente Cristina Kirchner com os veículos de comunicação na Argentina, a atuação das três presidentes mulheres na América Latina (além de Kirchner, Dilma Rousseff e a chilena Michelle Bachelet) e a possibilidade de comparar a força do peronismo argentino com o petismo no Brasil.
“O PT não tem a continuidade de décadas no poder, como o peronismo, que não governou sempre, mas durou sempre”, disse.
Provocativa, ao voltar a seara literária a ensaísta defendeu que o que mais define a identidade de uma nação nos dias de hoje não é sua literatura, e sim o futebol.
Ela diz ter pensado na questão por causa de um artigo do crítico Alcir Pécora na revista digital “Peixe Elétrico”, em que ele argumenta que a cultura pop encontrou um lugar e substituiu o que antes era o ponto de identidade de um país, a obra literária.
“Antes, na Argentina, todo menino aprendia versos de Martín Fierro. Agora a primeira palavra que eles aprendem é ‘Messi'”, brincou. “E falo sério, não brincando. O futebol é o ponto de identificação nacional, não importa se eu gosto ou não.”
Questionada pela plateia, Sarlo comentou o caso do escritor Pablo Katchadjian, 38, condenado na Argentina por violação intelectual de “O Aleph”, de Jorge Luis Borges -em seu livro “Aleph Engordado”, ele acrescentou 5.600 palavras ao conto do mestre argentino, o que levou a viúva, María Kodama, a entrar na Justiça.
“Ele publicou 200 exemplares que enviou aos amigos, e Kodama o processou. Estamos atrasados em relação a uma lei de propriedade intelectual”, disse ela.
O argumento da ensaísta é que um escritor deve ter direito sobre o que produz, mas que seus herdeiros nem sempre estão aptos a definir o que pode ou não ser feito no que diz respeito a herança estética e intelectual.
Sem dizer o nome do romancista, ela citou o caso de um escritor argentino que, quando morreu, há 60 anos, sem filhos, teve os direitos de sua obra transferidos para duas “tias anciãs beatas” que recorreram a um padre para saber como lidar com a obra. Ao ouvir dele que tal e tal livros não podiam ser publicados, por serem pecaminosos, elas proibiram novas edições.
“Até que elas morressem, os romances não puderam ser publicados. Isso é o que eu quero dizer: elas não estavam em condição de avaliar isso. É preciso discutir uma nova lei de propriedade intelectual na Argentina”, argumentou.