Na série palavras vazias, a independência tem lugar de destaque. Sua comemoração então, nem se fala. Nas escolas, crianças e jovens estudam um D. Pedro I caricato em uma imagem inventada por Pedro Américo. A independência é encenada como se um grito no meio do mato fosse suficiente para um país se tornar independente. E depois reclamamos de ser esse país o que se ganha tudo no grito.
D. Pedro foi o cara. Ele fez e nós, os brasileiros, assistimos a tudo quietinhos, no nosso lugar. Nosso papel? Aplaudir e concordar.
Aliás, para muita gente, melhor que tenha sido assim (e se não foi, que seja assim que se conte a história). A ideia de um nobre fazendo as coisas, decidindo como deveria ser é, ainda hoje, muito mais reconfortante do que a de massas nas ruas gritando e querendo um poder para todos. Não, deixa o D. Pedro, valoriza o D. Pedro, entroniza o D. Pedro, mitifica o D. Pedro. E comemora o D. Pedro. Com feriado é ainda melhor.
Pouca gente lembra que esse mesmo D. Pedro fechou a primeira constituinte brasileira, impôs um texto de lei feito sob encomenda para ele e que centralizava o poder em suas mãos, por meio de um esdrúxulo Poder Moderador que era, na verdade, um Poder Totalizador. Pouca gente lembra que esse mesmo D. Pedro reprimiu revoltas liberais, executou lideranças populares, levou à falência o banco do Brasil após envolver o Brasil em um conflito patético com a Argentina, fechou jornais e mandou bater em jornalistas, provocando a morte de um deles, Líbero Badaró.
Pouca gente lembra que esse mesmo D. Pedro foi escorraçado do país pela turba em fúria, pois pouca gente aguentava a falta de caráter desse D. Juan tupiniquim, déspota e nepotista. Pouca gente lembra que não houve nenhum avanço social e que o nosso libertador deixou a economia em pandarecos. Pouca gente lembra. O mito vence o fato. As aventuras amorosas com a Marquesa de Santos et alii valem mais como repertório para agradar alunos do que a análise das aventuras de um nobre exilado tentando recriar no Brasil a Restauração europeia, ancorado em uma malta de funcionários trazidos por D. João – depois organizados em torno do Partido Português – e responsável pela formação de um governo para garantir os interesses desses grupos – e não para atender aos interesses de uma população já secularmente espoliada.
E assim nasceu o país: centralizador, excludente, golpista, corrupto, arrogante e distante. D. Pedro foi seu executor. Uma elite ciosa de seus interesses e agarrada aos seus privilégios, seu esteio. E uma população de pessoas livres e pobres, de escravos africanos e brasileiros, seus burros de carga. Mesmo diante de tudo isso, agarramo-nos a esse mito de nascimento da nação livre, a esse marco zero do país. O curioso é que, junto com a comemoração não há a lembrança de nenhuma meta, promessa, objetivo, propósito, desafio.
Comemoramos a Independência para lembrar o que mesmo? Para refletir sobre o que mesmo? Para renovarmos o compromisso e a luta pelo que mesmo? Nessa semana da pátria, que essa pequena reflexão contribua para uma coisa: gente, há muito (tudo) o que fazer para conquistarmos (com nossas mãos) a independência da cidadania, da educação, da boa política. Que seja logo, ainda que tardia.

Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica pela UFPR e professor de História no Curso Positivo