CAMILA MATTOSO SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Um ex-gerente das categorias de base do Corinthians e um conselheiro são acusados de desviar dinheiro do clube em negociações envolvendo jogadores. Fábio Barrozo, que se demitiu em 13 de abril, e Manoel Ramos Evangelista, que carrega o apelido de Mané da Carne, são os pivôs de um problema que já virou crise dentro do Parque São Jorge. Ambos são conhecidos pela estreita relação que mantêm com o ex-presidente e superintendente de futebol, Andrés Sanchez. A história começou no ano passado e chegou ao presidente Roberto de Andrade há cerca de 15 dias, o que provocou o pedido de demissão de Barrozo. A diretoria alvinegra, por meio do departamento jurídico, confirma o episódio, mas diz que é vítima de toda a situação, que não sabia e que não autorizou as ações da dupla. O valor envolvido nas negociações é de US$ 110 mil. Procurado, Barrozo nega que tenha recebido dinheiro por fora e nega que tenha agido de forma inadequada na situação. Nega ainda que tenha pedido demissão por esse motivo. Mané da Carne não atendeu às ligações da reportagem. Trocas de mensagens mostradas ao presidente corintiano ajudam a explicar parte do imbróglio. A reportagem também teve acesso às conversas. Algumas seguem uma ordem cronológica, outras estão embaralhadas. Todas, porém, revelam algo. Há pedidos por parte de Barrozo para que os assuntos não sejam repassados a pessoas próximas de Roberto de Andrade. Barrozo, ex-gerente da base, e Mané da Carne, conselheiro, são acusados de ter enganado um empresário que mora nos Estados Unidos chamado Helmut Niki Apaza ao venderem duas coisas: uma carta que dava o direito de Apaza representar o clube brasileiro em negociações nos EUA e uma porcentagem de um jogador da base (Alyson José da Motta). Nenhuma das duas coisas, porém, tinha validade, o que fez o empresário acionar o alvinegro para ser reembolsado. Segundo a versão do Corinthians, foi assim que a diretoria tomou conhecimento do caso. A reportagem tentou falar com Niki, mas não conseguiu resposta. Nenhum contato de Julio foi encontrado. Onofre Almeida, diretor das categorias de base, que também é citado nas mensagens, não quis falar com a reportagem. A PORCENTAGEM DO JOGADOR Alyson José da Motta completa neste domingo, dia 1º de maio, 16 anos. É com essa idade que um jogador pode, enfim, formalizar um contrato profissional com seu clube. Mesmo assim, revelam as trocas de mensagem, Barrozo negociou com Niki 20% dos direitos do atleta. Ou seja, a negociação foi em cima de algo que ainda nem existe. Esse seria o primeiro motivo para a venda não prosperar. O segundo é que, desde maio de 2015, a Fifa não permite mais que os atletas tenham seus direitos fatiados entre empresas. Portanto, havia dois problemas na transação, deixando-a praticamente nula. O ex-gerente da base argumenta em sua defesa que, embora o contrato não existisse ainda, havia um acordo de cavalheiros, o que é comum no futebol, e que o pagamento se dá, na verdade, no momento em que o jogador é revendido para outro time. Segundo seu argumento, quando Alyson fosse vendido para alguma equipe, se tivesse de fato um contrato com o Corinthians e mais de 16 anos, 20% do valor recebido seria repassado ao tal investidor. Barrozo explica também que aqueles 20% dos direitos econômicos de Alyson pertenciam ao empresário do jovem, com nome de Julio, como aparece nas conversas e que ele, Julio, quis se desfazer da parte que tinha, vendendo para Niki Apaza. O ex-gerente da base afirma que embora apareça nas mensagens, só estava ficando a par das negociações, para colocar o que havia sido decidido nos contratos que seriam assinados aos 16 anos. As conversas às quais a reportagem teve acesso, porém, dão a entender que o desenrolar da venda foi feito sem o conhecimento de Julio e sem conhecimento de parte da diretoria alvinegra. “Da mesma maneira que você confiou em nós, nós confiamos em você. Você falou que nunca falou nada a respeito dos valores do Alyson para o Julio e nós acreditamos em você. Agora o Julio está falando que você disse pra ele que pagou US$ 60 mil pra mim e para o seu Mané. E que além disso, pagou US$ 50 mil por uma autorização. E que se não fizermos o que ele quer a respeito do Alyson, ele vai falar com o presidente do nosso clube. Eu não acredito que você falou isso para ele. Você acha isso certo?”, escreveu Barrozo para Niki. Em outro momento, o ex-gerente pede sigilo sobre as negociações. “Não comente nada da compra do Alyson na frente do vice-presidente. Isso é só entre nós e seu Mané”. Niki logo responde: “Kkkk. Eu sei. Não se preocupa”. Foi decidido que o acerto do empresário, em tese com o clube, seria feito em três vezes: em novembro e dezembro do ano passado e em janeiro deste ano. Algumas das mensagens mostram que pagamentos já tinham sido realizados, por exemplo, quando Niki diz que “não se preocupe com dinheiro que investi” e quando escreve que “vou pagar o que estou devendo”; ou quando Barrozo manda “pode pagar a última parcela para ele [pessoa não identificada]”. Barrozo afirma que o pedido de segredo das negociações não era por motivo de “coisa errada”, mas simplesmente porque nem todos precisam ficar sabendo das negociações que acontecem em cada categoria. Ele argumenta que, quando um jogador é contratado para o profissional, o assunto não é tratado com toda a diretoria e demais funcionários. A CARTA DE REPRESENTAÇÃO Com uma carta em mãos, de papel timbrado do Corinthians, Helmut Niki Apaza percorria os Estados Unidos tentando negociar jogadores. O problema, porém, é que os times norte-americanos não colocaram fé no documento apresentado pelo empresário, por não ter a assinatura do presidente Roberto de Andrade. Em uma troca de mensagens, Niki conta a Barrozo a dificuldade que está enfrentando e pede providências. Em resposta, o dirigente corintiano explica que os interessados nos EUA devem procurar a ele ou ao Onofre Almeida, diretor da base, e que só eles dois podem confirmar a veracidade do papel. “Não temos culpa se o pessoal aí procurou as pessoas erradas. Façam eles entrarem em contato conosco que confirmaremos.” A BRIGA COM O “VICE” Não fica claro nas trocas de mensagens o motivo pelo qual o vice, que é Jorge Kalil, não poderia saber das negociações em andamento. O que se sabe é que há algumas semanas ele e Mané da Carne tiveram uma grande discussão, confirmada por Barrozo. Aos berros, eles se enfrentaram. De acordo com testemunhas, Kalil chamou o conselheiro de ladrão por mais de três vezes. A diretoria do Corinthians disse à Folha que Mané da Carne, que acompanhava praticamente todas as viagens da delegação, já não embarcou com o time na última excursão e não deve ir mais, por tempo indeterminado. Kalil foi procurado, mas disse que não falaria com a reportagem sobre o tema. O QUE MAIS DIZ BARROZO O ex-gerente das categorias de base do Corinthians atendeu à reportagem por cerca de 40 minutos por telefone. Respondeu a todas as perguntas que foram feitas. Ele se defende de todas as acusações, embora confirme a veracidade das trocas de mensagens. Segundo Barrozo, o dinheiro envolvido se refere à negociação entre Julio e Niki e que jamais vendeu a carta de representação. Ele afirma que os US$ 50 mil citados sobre esse assunto eram, na verdade, a soma dos gastos na viagem que fizera: alguns dias em Miami para todos os acertos, com alimentação e hospedagem pagos. Diz que jamais atenderia à imprensa se tivesse feito algo de errado e alega ter saído do Parque São Jorge com uma “carta de referência”, na qual “nada consta que desabone sua conduta pessoal ou profissional”. A palavra oficial do Corinthians sobre isso é que a área de Recursos Humanos deu essa carta, sem consultar nenhum departamento do clube. Barrozo afirma estar sendo vítima de vazamentos que tentam prejudicar sua imagem e sua postura. O QUE MAIS DIZ O CLUBE Em conversa por telefone, Rogério Mollica, diretor jurídico do Corinthians, afirmou à Folha que assim que tomou conhecimento, o presidente Roberto de Andrade lhe pediu que tomasse providências. Segundo Mollica, Barrozo foi chamado para dar esclarecimentos sobre o caso, momento em que pediu demissão. O ex-gerente, porém, nega que tenha sido chamado para dar qualquer tipo de explicação. Afirma que foi ao departamento de Recursos Humanos pedir seu desligamento por questões profissionais, em busca de novos desafios. Mollica afirma que seria aberta uma sindicância contra Barrozo e que ele seria demitido. Diz também que o clube vai apurar o caso, para ver quem são as outras pessoas envolvidas. “O empresário veio pedir ressarcimento. Dissemos a ele que nada havia entrado no clube. Se ele pagou algo a alguém, deveria pedir o ressarcimento a essa pessoa”, afirma o diretor jurídico. “Dizem que essas cartas são normais no futebol. Mas não era para ter sido vendida, obviamente. Nem sabíamos que seria. Sobre o jogador, ele não tem contrato, não tinha nem como vender. Imagina se cada um começar a vender alguma coisa aqui dentro”, diz. Sobre Mané da Carne, por ser um conselheiro, Mollica diz que apenas o conselho tem o poder de tomar alguma decisão. O diretor ainda defende que o Corinthians foi uma vítima do que chama de “um golpe” de algumas pessoas. O FUTEBOL PROFISSIONAL A única ligação do episódio com o futebol profissional se dá pela presença de Edu Ferreira, diretor-adjunto de futebol, nas trocas de mensagens. Ele aparece dizendo que vai fazer a carta que o empresário Niki está precisando. “Vai receber sua carta. Foi difícil, mas consegui. Fábio [Barrozo] te explica”, escreveu o dirigente. O departamento jurídico do clube afirma que ele apenas ajudou a conseguir a carta, o que é parte da função dele, mas não imaginava que ela seria vendida. Procurado, Edu Ferreira disse ter sido usado no episódio para outros objetivos. “Essa carta é comum no futebol para dar o direito a pessoa falar em nome do clube para aquele determinado assunto. Infelizmente as pessoas querem misturar as coisas colocando a maldade na frente. O que eu fiz foi defender os interesses do Corinthians, quando me foi solicitada a carta eu comuniquei a direção que me liberou para que eu a fizesse, como faço sempre”, respondeu. DÚVIDAS Há uma série de lacunas deixada pelas trocas de mensagem. Há perguntas para serem respondidas pelas diretoria corintiana a respeito deste episódio. – Qual teria sido a participação de Onofre nas tratativas? – A quem Barrozo afirma que Niki poderia pagar a última parcela? – Edu Ferreira diz que precisa ajudar uma pessoa, quem seria? – Niki diz em uma mensagem que se reuniu com Mané, Edu e mais alguém, que foi omitido nas trocas de mensagem. Quem seria? – Edu Ferreira diz que foi difícil conseguir a carta, por que teria sido tão difícil? – Por que Roberto de Andrade não poderia ter assinado as cartas em questão? – Barrozo e Niki falam sobre uma negociação com um time peruano. Sobre quem seria? – Na troca de mensagens com Onofre, Niki diz que está muito bravo com alguém. Com quem seria? – Esse teria sido o único caso de venda de jogador desse tipo? QUEM É QUEM Fábio Barrozo: entrou para ser gerente da base em março de 2012 e pediu demissão em 13 de abril de 2016. Sempre foi aliado de Andrés Sanchez, a quem agradece em sua mensagem de despedida, em redes sociais. Manoel Ramos Evangelista, o Mané da Carne: foi uma das pessoas mais importantes na construção da carreira política de Andrés no Corinthians. Assessorava diretamente ex-presidente do clube, com mantém relação estreita até hoje. Onofre Almeida: é diretor das categorias de base do Corinthians. Eduardo Ferreira: ex-assessor de imprensa da Gaviões da Fiel, Edu Ferreira, ou Edu Gaviões, começou a construir sua vida política no Parque São Jorge na ouvidoria do clube. Aliado de Andrés, foi escolhido para ser diretor-adjunto de futebol no mandato de Roberto de Andrade. Helmut Niki Apaza: empresário que mora nos Estados Unidos. Tentou intermediar negociações de jogadores do alvinegro com clubes naquele país, entre eles Gabriel Vasconcelos e Mendoza. Alyson José da Motta: atleta que chegou à base corintiana no final de 2014, segundo Barrozo. Jorge Kalil, o “vice”: conselheiro corintiano foi escolhido para ser o segundo vice-presidente da gestão de Roberto de Andrade. Nas conversas, Barrozo pede a Niki que não conte a Kalil sobre as negociações em andamento. Giuliano Bertolucci: empresário de jogadores. Wagner Ribeiro: empresário de jogadores. Julio: empresário original de Alyson José da Motta. Vitinho: jogador da base do Corinthians que quase foi embora no início deste ano, ao completar 16 anos. Chegou a fazer uma experiência no Manchester City, mas acabou assinando seu primeiro contrato profissional com o alvinegro em março.