RODOLFO VIANA, ENVIADO ESPECIAL
PARATY, RJ (FOLHAPRESS) – Mixórdia: substantivo feminino que significa mistura ou bagunça. Não poderia haver palavra mais apropriada para um encontro entre a cronista e roteirista Tati Bernardi, colunista da Folha de S.Paulo, e o escritor e humorista português Ricardo Araújo Pereira.
Mediada por Gregorio Duvivier, também colunista da Folha de S.Paulo, a mesa “Mixórdia de Temáticas” da 14ª Flip (Feira Literária Internacional de Paraty), no começo da noite desta sexta (1º), tratou do riso, de Deus e da presidente afastada Dilma Rousseff.
Mas começou com um mantra: “Primeiramente, ‘Fora, Temer’.” A frase de Duvivier tirou uma salva de palmas da plateia –a primeira de muitas–, e política voltaria a ser o tema da mesa de humor.
“Eu queria dizer que minha voz rouca era de tanto gritar ‘Fora, Temer'”, brincou Bernardi. “Mas é de nervoso mesmo.”
A cronista disse que percebeu que era engraçada na escola. “Os alunos riam porque eu era inadequada: usava botinha ortopédica, não devolvia a bola no vôlei… Eu era inteira errada”, disse. “Em algum momento da adolescência, entre me matar e ganhar dinheiro com isso, decidi ganhar dinheiro com isso.”
Ser uma mulher que faz rir, contudo, seria alvo de preconceito. “Já ouvi que não é sexy uma mulher ser engraçada, mas tenho mais tesão em ser engraçada que ser sexy.” Ela explica que a comédia tira o véu de mistério da pessoa. “No humor, não há o que esconder; você está pelada, flácida, exposta em praça pública.”
Já Pereira descobriu que era engraçado na infância –e que deveria dar importância ao riso. Com voz embargada ao se lembrar da avó, contou que seus pais eram tripulantes de uma companhia aérea e, como ficavam muito tempo longe, ele era cuidado pelos avós. “Aos 39 anos, minha avó ficou viúva e se tornou uma mulher sisuda. A tarefa de fazer minha avó rir eu levava a sério. Ela é ainda hoje a pessoa mais importante para mim.”
O riso, aliás, “é uma maneira que a gente encontrou de conseguir suportar o mundo, que é demasiado pesado”, disse o português. “Isso fica muito evidente quando a gente pensa que o humano é o único animal que ri e que tem consciência de sua própria extinção.”
Assim, apenas os imortais não teriam um riso nos lábios. “Na Bíblia, Deus não ri; Jesus Cristo chora algumas vezes e não ri nenhuma”, comenta.
Pereira acredita que “comédia é tragédia mais distância”, o que explica a gente rir de algo que aconteceu no passado (aí há o distanciamento temporal) ou de algo que acontece a outra pessoa –o afastamento físico. “Mas existe um distanciamento, o mais difícil, que é de si mesmo. Tati consegue fazer isso, se ver como um avatar. Algumas pessoas chamam isso de loucura”, comenta.
Bernardi concorda: “Eu meio que virei personagem de mim mesma, com um superego que fica torcendo para algo dar errado, pois sabe que vai dar um bom texto”. Paradoxalmente, isso não combina com a ansiedade, condição da qual ela sofre. “O ansioso deveria não querer se expor, mas eu tenho muito prazer.”
Duvivier faz um adendo sobre a importância do humor. Comenta que, em Portugal, o aborto é legalizado para até 12 semanas de gravidez. “A legalização é, em parte, por causa de um referendo cujo resultado favorável foi influenciado por um esquete de Ricardo Pereira.”
“Não quero ser pregador, não quero evangelizar as pessoas. Eu quero fazer as pessoas rirem”, responde o português. “Deus disse ‘eu sou o sal da terra’, aquilo que conserva. Eu acho que humoristas são o orégano: dão um saborzinho.”
DEU SAMBA
O mediador também pediu as opiniões de Bernardi sobre a situação política brasileira. Ela afirmou que foi petista a vida inteira. “Eu morei num prédio que tinha uma fábrica em frente, e o Lula ia lá fazer discurso. Minha mãe falava ‘esse homem vai mudar o Brasil'”, lembra. “Eu fiquei muito triste com o que aconteceu. Mas Temer e Aécio são muito piores.”
A plateia respondeu com muitos aplausos e algumas vaias tímidas. “Quem me vaia também tem razão”, respondeu Bernardi. “Quando a opinião é muito de extremo, ela está errada.”
Pereira lembrou que “o Brasil é o país do Carnaval”, mas lá de Portugal, vendo que “a presidente era acusada de algo ilegal, o vice era acusado de algo ilegal e o presidente da Câmara era acusado de algo ilegal”, apontou uma distorção. “Nos outros países, o Carnaval é o momento da loucura, quando o mundo é virado todo ao contrário. [Com a política nacional] O Brasil devia ser o país da quaresma: durante semanas vocês se comportam e depois retornam [à loucura].”