À exceção de seus beneficiários diretos, raros são os turcos que não acreditam em Recep Erdogan como o patrocinador e organizador da tentativa de golpe, naturalmente frustrada, feita com a intenção de derrubá-lo da cadeira presidencial onde na verdade se encontra desde 2008, quando foi eleito Primeiro Ministro. Dois anos atrás, como líder do Partido da Justiça e Desenvolvimento, o islamista AKP (em turco Adalet ve Kalkinma Patis) que, a partir do antigo Partido da Virtude, ele mesmo criou em 2001, graças a uma mudança constitucional venceu a primeira eleição pelo voto popular para Presidente da República. Ao invés de cumprir com as promessas de fazer um governo democrático e para todos, dedicou-se, metodicamente, a concentrar cada vez mais poderes até se transformar, na prática, num ditador. A debacle do Império Otomano propiciou o advento da república pelas mãos de Kemal Ataturk em 1923, logo após o fim da 1ª. Guerra e desde ai nenhum líder turco tornou-se tão poderoso quanto Erdogan. E ele quer mais, quer o poder absoluto.

A Turquia persiste como um país laico, submetida a duas grandes forças: o Islã que congrega 98% da população, e o militarismo, responsável por várias tentativas de golpe nos últimos anos (a última delas em 1980, mas as ameaças nunca desapareceram). No sudeste do país o Curdistão turco é uma fonte permanente de desacordos internos. Longe de ser um fator desprezível, reúne 14 milhões de curdos (18% da população total) representados pelo Partido Democrático do Povo (HDP) que ocupa 59 das 550 cadeiras no Parlamento nacional. Com seus guerreiros peshmerga os curdos têm sido os mais efetivos combatentes, no terreno, das forças do EI – o Estado Islâmico, no Iraque e na Síria. Os Estados Unidos lhes fornecem armamentos, mas também abastecem a todos os que integram a aliança de combate ao EI. Erdogan faz questão de receber as bombas e os fuzis, mas ao invés de usá-las contra os terroristas bombardeia as cidades curdas e os peshmerga nas frentes de batalha. Desconfiados com aliado tão instável, mas não agindo para desestabilizá-lo (afinal, a Turquia é membro da OTAN e, como tal, a ponte quase perfeita de acesso ao Oriente Médio), Obama e Putin detestam o presidente turco, inclusive porque ele tem permitido intenso tráfego por seu território de militantes ocidentais que alimentam o EI com mão-de-obra qualificada.

A intentona (covarde ataque de surpresa, motim mal articulado, segundo o Dicionário Sacconi) traduz o desespero de Erdogan, assustado com os sinais de crescente insatisfação de uma ala dos militares com o expurgo e novas trocas de comando previstas para dentro de um mês no máximo. No último dia 20 de maio o dócil Congresso nacional aprovou a perda de imunidade parlamentar para 138 deputados que são processados pelo governo, abrindo caminho para eliminar a bancada curda e cassar os mais ativos oposicionistas. A imprensa já está amordaçada, graças à intervenção oficial no Zaman e no Cumhuriyet (os únicos jornais que ainda publicavam notícias contrárias ao governo) e prisão de seus proprietários. A organização Repórteres Sem Fronteira classifica a Turquia em 149º liugar entre 180 países no quesito liberdade de imprensa. Um ex-aliado, o clérigo islâmico Fetthullah Güllen, hoje residindo nas montanhas Poconus na Pennsylvania, acusado por Erdogan de coordenar o golpe, logo declarou que não tem nada com o que considerou ser um teatro organizado pelo presidente. Quanto a Ahmet Davutoglu, 1º Ministro, foi forçado a renunciar logo depois de manifestar discordâncias com propostas do Executivo.

Convenientemente, Erdogan e sua família estavam em férias no Marmaris, um reservado Resort e Spa 5 estrelas às margens do mar Egeu, quando o ataque aconteceu na 6ª. feira em Ankara. No sábado já estava dominado, com um trágico saldo de 265 vítimas e Erdogan retornou num vôo sem riscos a Istambul. De imediato instalou-se a repressão seletiva, com a prisão de 2.745 juízes e promotores, supostamente apoiadores da rebelião, no mais evidente sinal de que tudo estava direcionado a liquidar com a máquina do Judiciário que estava dando cabimento às centenas de ações contestadoras das medidas ditatoriais e das evidências de corrupção na administração central do país. É certo que mais de 3.000 soldados e alguns de seus comandantes já foram detidos e que condenações à pena máxima devem suceder-se a curto prazo. Um grupo de oito militares de alta patente fugiu de helicóptero para a Grécia. Tudo dentro do previsto.

Vitor Gomes Pinto
Escritor. Analista internacional