MAURÍCIO TUFFANI
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Morreu nesta quarta-feira (24), aos 96 anos, o filósofo Gilles-Gaston Granger, um dos professores franceses que ajudaram a consolidar o departamento de filosofia da USP, informou a instituição em nota em sua página oficial.
A causa da morte e informações sobre o enterro não foram divulgadas.
Nascido em Paris em 28 de janeiro de 1920, Gilles-Gaston Granger se tornou um dos principais nomes da epistemologia (teoria do conhecimento) do século 20. Além de sua importância como autor de obras relevantes, como “O Irracional” (1998), ele teve também uma atuação marcante nos primórdios do departamento de filosofia da USP e na formação de estudiosos brasileiros nessa área.
Granger ingressou em 1938 na ENS (Escola Normal Superior), em Paris, onde estudou matemática. Após concluir sua graduação, ele iniciou seu doutorado na mesma instituição, mas direcionou essa etapa de sua formação para as áreas de epistemologia (teoria do conhecimento), lógica e filosofia da ciência.
Em sua pós-graduação na ENS, Granger teve grande influência do rigor analítico de Martial Guéroult (1891-1976) no estudo de obras filosóficas. Apesar do aprofundamento na abordagem estrutural a partir dos textos dos próprios autores aprendida com o mestre, o jovem viu inicialmente nela muito mais um meio que um fim, devido ao seu interesse na epistemologia.
Anos mais tarde, esse aprendizado com Guéroult foi fundamental para ele ampliar seu horizonte intelectual e o campo de sua reflexão não só no plano da filosofia, mas das ciências em geral, inclusive as ciências humanas.
LÓGICA
Decidido a manter o foco de sua atividade intelectual na teoria do conhecimento, Granger teve nessa etapa de sua formação não só a orientação de Gaston Bachelard (1884-1962), um dos mais importantes filósofos da ciência dessa época, mas também a grande influência do matemático, lógico e epistemólogo Jean Cavaillès (1903-1944).
“Segui com paixão os ensinamentos deles”, disse Granger, referindo-se aos dois pensadores em uma entrevista em 1988 à revista “Le Nouvel Observateur”. “Cavaillès foi a pessoa que mais admirei e foi graças a ele que pela primeira vez ouvi falar de [Ludwig] Wittgenstein [1889-1951, filósofo austríaco cuja obra ‘Tractatus Logico-Philosophicus’ desencadeou o surgimento da filosofia analítica]”.
Cavaillès era uma combinação do acadêmico de grande profundidade teórica com o ativista político incapaz de deixar de responder às demandas do “aqui e agora”. Assim como estudou e debateu com pensadores como os alemães Martin Heidegger (1889-1976) e Edmond Husserl (1859-1938), ele também foi um dos organizadores da Resistência Francesa durante a ocupação da França pelas tropas de Adolf Hitler.
Granger não deixou de se beneficiar de sua vivência com o vigor intelectual de Cavaillès. Ao concluir seu doutorado em 1943, aos 23 anos, ele já tinha uma sólida formação filosófica ancorada no racionalismo e atenta aos desafios e questionamentos sobre a linguagem formulados inicialmente por Wittgenstein e pelo britânico Bertrand Russell (1872-1970).
Nesse mesmo ano em que se doutorou, Granger se engajou completamente na Resistência. Cavaillès já havia trabalhado na formação do núcleo Libertação Sul e também na fundação do jornal clandestino “Libération”, hoje um dos principais diários da França, e estava atuando como um dos principais dirigentes da organização na região norte do país.
Granger praticamente não conviveu no grupo com seu mestre, que depois de ser preso, conseguiu fugir e passou completamente para a clandestinidade. Capturado novamente em agosto de 1943, o professor foi torturado nos meses seguintes e fuzilado em fevereiro de 1944.
A perda do amigo e mentor foi muito sentida pelo jovem, que escreveu um ensaio em homenagem ao pensamento dele, “Jean Cavaillés, ou a escalada para Spinoza”, publicada em 1947 na revista “Les Études Philosophiques”.
Em 1944 abriu-se uma das primeiras brechas na filosofia francesa -ou “continental”, como também chegou a ser chamada- para o pensamento epistemológico do outro lado do canal da Mancha. O CNRS (Centro Nacional de Pesquisas Científicas) contratara o ex-colega de Granger na ENS Jules Vuillemin (1920-2001), também aluno de Bachelard e de Cavaillès e dedicado à filosofia analítica.
Apesar dessa abertura após a libertação da França em 1944, Granger não havia conseguido uma colocação acadêmica em seu país nem mesmo após o fim da 2ª Guerra Mundial, em 1945.
Apesar disso, sua formação robusta e consistente foi decisiva para o governo francês selecioná-lo para participar do programa de cooperação internacional, que no Brasil tinha como uma das principais atividades a consolidação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, fundada em 1934.
BRASIL
Granger chegou de navio ao porto de Santos em 1947, onde foi recebido por João Cruz Costa (1904-1978), chefe do departamento de filosofia da USP.
“Subimos em direção a São Paulo pela estrada velha, que serpenteia, atravessando a serra do Mar. Minha primeira visão da capital: o viaduto do Chá, o Anhangabaú, a charmosa Praça Ramos e seu diadema de paineiras -vistos do 11º andar do Hotel São Paulo, o então mais novo e mais belo”, disse Granger 41 anos depois, em um artigo de depoimento à Folha de S.Paulo para o aniversário da cidade em janeiro de 1988.
Além de Cruz Costa e de Lívio Teixeira (1902-1975), também do departamento de filosofia, Granger fez muitas amizades na capital paulista com intelectuais como Sérgio Buarque de Hollanda (1902-1982), Lourival Gomes Machado (1917-1967), Sérgio Milliet (1898-1966), Oswald de Andrade (1890-1954), entre outros.
A influência de Granger no departamento de filosofia se deu com a consolidação das disciplinas de lógica e de teoria do conhecimento e filosofia da ciência. Sua permanência em São Paulo foi também um período de pesquisas muito produtivo, no qual desenvolveu grande parte dos estudos que tomaram forma em seus primeiros livros.
Ao deixar o departamento em 1953, ele disse aos demais professores que, para ensinar lógica, recomendava somente José Arthur Giannotti (1930), que se formara naquele ano.
“Foi-me permitido, para meu grande prazer, rever São Paulo em épocas sucessivas”, disse Granger em seu depoimento de 1988. “(…) ainda que parisiense de nascimento e provençal por adoção, nunca cessei nem cessarei de habitá-la em meus sonhos.”
RENNES
No retorno à França, o jovem lógico e epistemólogo consegue finalmente seu primeiro emprego de pesquisador no país ao lado de Vuillemin no CNRS, onde permanece até 1955. Nesse ano ele publica seus primeiros livros, começando por “A Razão”.
Mas é também nesse ano que ele começa a lecionar na Universidade de Rennes, situada na cidade de mesmo nome a pouco mais de 300 km a oeste de Paris. É lá que ele participa como orientador na fase complementar da formação de seu discípulo preferido Giannotti, que lá estava para fazer seu doutorado.
Nessa universidade ele também teve como discípulo Oswaldo Porchat Pereira (1933), outro jovem que viera do Brasil e acabara de deixar sua escolha inicial pelas letras clássicas para se dedicar à filosofia.
Orientado em Rennes em estudos sobre Platão e Aristóteles por Victor Goldschmidt (1914-1981), que era um dos principais historiadores da filosofia do século 20, Porchat teve com Granger a oportunidade de complementar sua formação com um mergulho profundo na lógica e na epistemologia.
A orientação de Granger foi o ponto de partida para a trajetória que levou o jovem brasileiro cerca de duas décadas depois a criar o Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).
Anos depois foram as vezes de outros professores da USP complementarem sua formação com Granger e Goldschmidt em Rennes, entre eles Bento Prado Júnior (1937-2007) e Rui Fausto (1935).
ESTILO
Apesar da influência inicial dos trabalhos iniciais de Wittgenstein e de Russell, Granger nessa nova etapa segue uma trajetória intelectual na filosofia analítica com uma independência marcante. Principalmente em relação à expressão mais radical dessa corrente, conhecida como positivismo lógico, neopositivismo ou Círculo de Viena.
O nome da corrente se referia à capital austríaca, onde antes da Segunda Guerra Mundial se reuniam seus expoentes como Moritz Schlick (1882-1936), Rudolf Carnap (1891-1970) e Otto Neurath (1882-1945), entre outros. O projeto neopositivista consistia basicamente na tentativa de livrar o conhecimento de equívocos decorrentes do mau uso da lógica e da linguagem.
O próprio Wittgenstein, que morrera em 1951, chegara a criticar o radicalismo da proposta neopositivista, da mesma forma que seu conterrâneo Karl Popper (1902-1994), que começara uma tradição analítica independente como professor e pesquisador na London School of Economics, no Reino Unido.
Com seu segundo livro, “Metodologia Econômica”, também de 1955, Granger mostrou que sua opção pela filosofia analítica não descartava o estudo das ciências humanas -entre elas a antropologia e a linguística e a psicologia não comportamentalistas-, diferentemente das tendências mais expressivas dessa corrente, principalmente nos Estados Unidos.
Granger não fez meras incursões por essas disciplinas para se tornar um filósofo analítico um pouco mais “arejado”, como foi Popper, do outro lado do canal da Mancha. Na verdade, sua bagagem intelectual compreendia uma profunda familiaridade com essas áreas, que foi evidenciada em seu livro “Pensamento Formal e Ciências do Homem” (1960).
Essa mesma profundidade incomum aos filósofos analíticos ressurge em “Ensaio para uma Filosofia do Estilo” (1968). Com esse novo livro, Granger deu sua grande contribuição para a análise estruturalista de obras, consagrada por alguns dos grandes historiadores da filosofia do século 20, inclusive seu velho mestre Guéroult e Goldschmidt, seu colega em Rennes.
“Introduzi o conceito de estilo um pouco para complementar a análise estrutural”, disse Granger à “Le Nouvel Observateur”. “A análise do estilo serve para descrever como os conceitos são formados, não do ponto de vista de seus avatares históricos, mas de seu encadeamento interno em uma obra particular.”
IRRACIONALISMO
Por meio de uma cooperação entre o governo francês e o da ex-colônia do Congo, Granger assume a direção da recém-criada Escola Nacional Superior em 1962, onde permanece por dois anos.
Em 1964, ele retorna novamente à França, assumindo o cargo de professor de filosofia na Universidade de Aix-en-Provence, na cidade de mesmo nome próxima a Marselha, na costa mediterrânea.
Granger permaneceu em Aix até se aposentar em 1986. Nesse ano ele fez mais uma de suas várias viagens ao Brasil e teve contato mais próximo com as lógicas não-clássicas. Esse novo capítulo na história da lógica havia sido fortalecido nos anos 1960 pelo brasileiro Newton da Costa (1927), recém-integrado ao departamento de filosofia após sua aposentadoria no Instituto de Matemática e Estatística.
No ano seguinte Granger passou a integrar o Collège de France, em Paris, considerada a mais prestigiada instituição acadêmica da França. Lá ele assumiu a cadeira de epistemologia comparativa e se tornou professor emérito em 1990.
Entre suas obras mais recentes teve grande destaque “O Irracional” (1998), na qual ele analisou sob diversos pontos de vista as diferentes manifestações que ele define como renúncias parciais ou completas à razão.
Entre as análises dessa obra ele contemplou também interpretações filosóficas sobre a ciência, como as do ganhador do Nobel de Química de 1977, Ilya Prigogine (1917-2003), do físico teórico e um dos expoentes da mecânica quântica David Bohm (1917-1992), e do físico austríaco e adepto do taoísmo Fritjof Capra (1939).
Diferenciando-se profundamente do radicalismo racionalista e imune aos modismos filosóficos, o pensamento de Granger sempre teve a característica de um exercício vigoroso e equilibrado da autonomia da razão.
Generoso na atenção com seus colegas e alunos, ele conduziu sua vida com a mesma discrição pessoal de outro grande adepto da autonomia da razão, o alemão Immanuel Kant (1724-1804), que em sua “Crítica da Razão Pura” homenageou Francis Bacon (1561-1624), parafraseando sua máxima latina “De nobis ipsis silemus” (Silenciemo-nos sobre nós mesmos).