A epígrafe do novo livro de crônicas do escritor paranaense Luís Henrique Pellanda é uma citação do célebre inglês Philip Marlowe: “Parecia uma boa vizinhança onde se cultivar maus hábitos”. A vizinhança é Curitiba, e os maus hábitos colocam o cronista — referendado por nomes como Ignácio de Loyola Brandão, Humberto Werneck, Marcia Tiburi e Ivan Angelo — nas ruas da cidade com um olhar muito particular e agora mais experiente. Detetive à Deriva (lançado pela editora Arquipélago) é o terceiro livro de crônicas do escritor. Antes, ele havia estreado na ficção em 2009, com O Macaco Ornamental (Bertrand), de contos, e desde 2014 publica semanalmente na Gazeta do Povo, o maior jornal do Paraná.

Os textos de Detetive à Deriva revelam um observador profissional e quase obsessivo com o seu ambiente urbano — as ruas e praças servem de trampolim para olhares para a própria cidade, mas também para a família, para a política, para o amor, para a morte. “As melhores ruas têm entrelinhas largas. Os melhores livros têm esquinas generosas, vias que se bifurcam. A imagem do labirinto é cara tanto à cidade quanto à literatura”, diz o autor por e-mail ao jornal O Estado de S. Paulo. A viagem particular que ele empreende por esse labirinto lhe rende adjetivações nada modestas de nomes destacados da literatura brasileira, ultrapassando a fronteira de Curitiba. “É isso (reinventar a crônica) que faz Luís Henrique Pellanda, com a facilidade de quem vai ali na esquina”, garante Alvaro Costa e Silva, o Marechal, na orelha do livro. “O grande cronista contemporâneo”, escreveu Marcia Tiburi. “Delicado, cruel, bem-humorado”, resumiu Ignácio de Loyola Brandão sobre Asa de Sereia (2014). Pellanda também quer voltar à ficção: está terminando um livro de contos e agora busca uma editora para ele.

“É comum me perguntarem o quanto de verdade há nas histórias que escrevo”, especula Luis Henrique Pellanda, 43 anos, em Mentirosos, uma das crônicas de Detetive à Deriva — que o autor e a Arquipélago lançam nesta quarta-feira, 5, em São Paulo, na Livraria Blooks do Shopping Frei Caneca, às 19h. “Respondo com meias-verdades: não sei, não importa, ninguém sabe.” É nesse tom que passeia entre o irônico, o afetuoso e a observação atenta, que as crônicas se apresentam. O autor falou com o jornal O Estado de S. Paulo sobre sua produção.

De onde vem essa relação tão intensa com a cidade?
Pellanda — Desde menino, sou leitor e pedestre. Eu era uma criança suburbana, e tanto os livros quanto minhas incursões pelo bairro, pelo mato e, mais tarde, pelo centro de Curitiba, me davam alguma esperança de fuga. A estagnação era o meu pesadelo. Por outro lado, ler livros era como andar na rua, e vice-versa. As melhores ruas têm entrelinhas largas. Os melhores livros têm esquinas generosas, vias que se bifurcam. A imagem do labirinto é cara tanto à cidade quanto à literatura. Lembro de uma ideia do escritor francês Edmond Jaloux: para o artista andante, virar à esquerda ou à direita já é um ato essencialmente poético. E, claro, político. A crônica, para mim, é o gênero mais adequado a esses exercícios.

Essa exploração literária da cidade também é uma investigação, não? Que culpado você procura? E culpado de quê?
Pellanda — Não procuro culpados nem serve a um cronista esse papel. Especialmente a um cronista de Curitiba, lugar que vem se firmando diante do Brasil como uma espécie de cidade-tribunal. Sei que julgar é demasiadamente humano, vivemos formando juízos. Mas o problema com os julgamentos é que eles, cada vez mais, têm partido de um desejo de condenação do outro, do diferente, do adversário. São rituais de desafogo, e literatura não é isso. Ela é, sim, investigação, e uma de suas formas mais eficientes é a exploração literária de nossas cidades.


A metáfora da janela

Vamos supor que o cronista é um olhar, ou melhor, um jeito de olhar. De onde você olha? Isso é algo que o preocupa?
Pellanda — Olho de uma janela simbólica. Ao comentar o amor dos cariocas pelas janelas, João do Rio já antecipava certa cultura janeleira que viria a caracterizar o brasileiro de modo geral. Com o tempo, claro, essa janela de onde vemos e somos vistos foi se transformando. Virou tevê, internet, celular. Por isso, ao dizer que olho o mundo a partir de uma janela, falo da janela como fronteira. A crônica é um gênero fronteiriço, fica entre o jornalismo e a literatura, o real e o ficcional, o efêmero e o eterno. E a janela é esse lugar entre o dentro e o fora, o público e o privado, o lar e a rua, o eu e o outro.

Esse livro me pareceu mais recheado de reflexões pessoais. Um escritor, ao amadurecer, se volta mais para si e para os seus?
Pellanda — Faz sete anos que escrevo crônicas semanais, e penso que a prática e a chegada dos leitores nos põem mais à vontade. O que pode ser perigoso, mas nunca indesejável. Só acho que essa percepção de amadurecimento pode ter mais a ver com o momento do leitor do que com o do escritor. A última palavra de qualquer livro será sempre do leitor.

Rubem Braga ou Antônio Maria? Qual é o seu débito com a tradição da crônica brasileira? Antes você se dizia devedor por não ter escrito crônica de passarinhos…, mas aqui já há, mesmo que, na maior parte das vezes, sejam urubus.
Pellanda — Ambos me comovem. Mas, como há muito deixei de ser um animal noturno, a sensibilidade de Rubem Braga, mais solar, apesar de soturna, talvez se aproxime mais da minha.

Serviço:
Detetive à Deriva
Autor: Luís Henrique Pellanda
Editora: Arquipélago (224 págs., R$ 39,90)