A primeira guerra mundial foi há cem anos. Muito se falou sobre as decorrências da Guerra: falta de propósitos claros, dos milhões de mortos, feridos, da ascensão econômica dos EUA, da frustração e ódio na Alemanha, germe do nazismo, do inicio do desequilíbrio político no Oriente Médio, etc.. Mas eu gostaria de falar de um outro fenômeno da guerra, lembrado pela primeira vez pelo pensador alemão Walter Benjamin, em texto de 1936, chamado O Narrador. Benjamin afirma que a guerra foi responsável por destituir uma geração inteira da capacidade de trocar experiências por meio de narrativas. Disse o filósofo: No final da guerra, observou-se que os combatentes voltavam mudos dos campos de batalha. Não mais ricos e sim mais pobres em experiências comunicáveis.
O homem da terra — o camponês — e o viajante — o marinheiro e o mercador — são as fontes principais das estórias que compõem o repertório de comunicação entre as pessoas e, por meio desse repertório, vão se fixando e passando, de geração em geração, os modos de agir e as regras de interdição que caracterizam o que chamamos de cultura ou autorreferência. Essa é a razão — ou deveria ser — de contarmos estórias para as crianças.
A guerra emasculou uma geração inteira de jovens, privando-os do lugar necessário e do tempo fundamental para a troca de experiências por meio das narrativas. A vivência nas trincheiras foi uma não-experiência; o medo diário e asfixiante não deixava espaço para registrar variantes, inversões de expectativas e desfechos surpreendentes típicos de qualquer boa estória. Não é à toa que o mais conhecido romance da primeira guerra, do alemão Erich Maria Remarque, descrevendo a rotina de horrores e sofrimentos da guerra, chamou-se Nada de novo no front. Semprun, no livro A escrita ou a vida, diz: Vem-me uma dúvida sobre a possibilidade de contar. Não que a experiência vivida seja indizível. Ela foi invivível, o que é outra coisa(…) Outra coisa que não se refere à forma de um relato possível, mas à sua substância. Não à sua articulação, mas à sua densidade.(…).
Hoje, como sabemos, as guerras continuam. Não em um sentido formal de guerras mundiais, com trincheiras ou bombas atômicas, mas a violência nas fronteiras, nos territórios ocupados, nos exercícios fundamentalistas, nas lutas de traficantes, no trânsito, na insensibilidade policial, na violência doméstica ou, simplesmente, ditada pela miséria e pelo descaso. Da mesma forma, o invivível desses fatos torna pouco crível seus relatos. As tentativas feitas pelos jornais e programas de televisão acabam promovendo uma anestesia, uma banalização, um menoscabo que exaspera as vítimas e reforça a invisibilidade dos algozes.
As guerras e a violência extática que elas proporcionam podem ser enfrentadas pela formação de novas sensibilidades. E só as criações narrativas têm o condão dessa formação. Se a violência é a marca secular de nossa humanidade desenraizada, a capacidade de sensibilizar os outros — principalmente as crianças e os jovens — com a riqueza artística de um relato — pode ser a maior bandeira de paz e de um futuro menos sombrio.

Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica pela UFPR e professor do Curso Positivo