TRADUZIR-SE
(do livro “Na Vertigem do Dia”, 1980, ed. José Olympio)
Uma parte de mim
é todo mundo;
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera;
outra parte
delira.
Uma parte de mim
almoça e janta;
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente;
outra parte
se sabe de repente.
Uma parte de mim
é só vertigem;
outra parte,
linguagem.
Traduzir-se uma parte
na outra parte
– que é uma questão
de vida ou morte –
será arte?

NASCE O POETA (trecho)
(do livro “Muitas Vozes”, 1999, ed. José Olympio)
No princípio
era o verso
alheio
Disperso
em meio
às vozes
e às coisas
o poeta dorme
sem se saber
ignora o poema
que não tem nada a dizer

APRENDIZADO
(Do livro “Barulhos”, 1987, ed. José Olympio)
Do mesmo modo que te abriste à alegria
abre-te agora ao sofrimento
que é fruto dela
e seu avesso ardente.
Do mesmo modo
que da alegria foste
ao fundo
e te perdeste nela
e te achaste
nessa perda
deixa que a dor se exerça agora
sem mentiras
nem desculpas
e em tua carne vaporize
toda ilusão
que a vida só consome
o que a alimenta.

MEU POVO, MEU POEMA
(do livro “Dentro da Noite Veloz”, 1975, ed. José Olympio)
Meu povo e meu poema crescem juntos
como cresce no fruto
a árvore nova
No povo meu poema vai nascendo
como no canavial
nasce verde o açúcar
No povo meu poema está maduro
como o sol
na garganta do futuro
Meu povo em meu poema
se reflete
como a espiga se funde em terra fértil
Ao povo seu poema aqui devolvo
menos como quem canta
do que planta