Vivemos em um mundo sexualizado, ao ponto do jornalista e escritor Millor Fernandes chegar a afirmar que de todas as taras sexuais a mais estranha é a abstinência. Verdade seja dita, somos seres sexuais, sentimos desejo, nos atraímos. Mas há de se ressaltar: o nós não é o todo, mas a maioria. Mais precisamente, 99% da população mundial.

Assexualidade enfrenta fortes barreiras discriminatórias

É que estudos sobre comportamento sexual estimam que 1% da população não tem interesse sexual por qualquer pessoa, homem ou mulher. Eles são os assexuais, um grupo formado por 2 milhões de pessoas em todo o Brasil, das quais aproximadamente 112 mil viveriam no Paraná. Uma delas é a escritora curitibana Luciana do Rocio Mallon, de 42 anos.

Logo na adolescência percebi que era diferente porque não gostava de ficar com os meninos sem ter compromisso. Para mim, o sexo sempre foi uma espécie de agressão, tanto que quando outras garotas apostavam quem beijava mais na escola ou nas festas, eu passava mal, me embrulhava o estômago, conta Luciana.

Diante da falta de informações, contudo, levou um bom tempo até a escritora perceber que não era um extraterrestre, mas que apenas tinha uma orientação sexual diferente da maioria das pessoas. Foi só entre 2004 e 2005, pesquisando na internet e conversando em fóruns, que descobri a existência da assexualidade e que eu era assexual, afirma.

Segundo a doutora em educação pela Universidade de São Paulo (USP) Elisabete de Oliveira, autora da tese Minha vida de ameba: os scripts sexo-normativos e a construção social das assexualidades na internet e na escola, a assexualidade é considerada historicamente um distúrbio na literatura médica e um problema no senso comum. Foi somente a partir do início do século XXI que a falta de desejo sexual começa a ganhar novo significado, reivindicando o status de orientação sexual.

Com o surgimento e crescimento de comunidades virtuais que reúnem milhares de membros no mundo todo, a falta de interesse por sexo tem sido compreendida como parte da diversidade sexual humana, recebendo o nome de assexualidade. Em lugar do transtorno e do distúrbio, o desinteresse pelo sexo tem sido associado à orientação do desejo sexual, escreve ela.

Preconceito e assexualidade
Esse processo de saída do armário, contudo, enfrenta fortes barreiras sociais. Afinal, vivemos numa sociedade altamente sexualizada, na qual os discursos médicos sobre a sexualidade são fundamentados na crença do desejo sexual universal e na premissa de que o corpo biológico constitui o lócus privilegiado da sexualidade. Nesse sentido, a atividade sexual e a busca por parceria amorosa são consideradas sinais de normalidade e componentes indispensáveis à felicidade, e quem não se encaixa no padrão pode acabar sendo questionado.

Uma queixa comum entre os assexuais é a pressão da família para que estejam namorando ou se casem, se reproduzam. Essas etapas lineares – seguidas pela maioria das pessoas -, podem não ser trilhadas pelas pessoas assexuais. Outra queixa é a presunção da homossexualidade. Uma pessoa que não tem interesse por sexo e/ou por relacionamentos amorosos pode ser percebida pela sociedade como homossexual, que não tem coragem de assumir publicamente sua homossexualidade, afirma a doutoura em educação Elisabete de Oliveira.

Luciana do Rocio, inclusive, já sentiu isso na pele. Depois de criar diversos grupos sobre assexualidade no Facebook, com o intuito de incentivar outros assexuais a se revelarem e comunicarem, foi atacada pelos trolls. Outra vez, numa ida à ginecologista, passou por uma situação constrangedora: A ginecologista achou que eu estava mentindo e ficou espantada ao saber que, aos 35 anos, eu nunca tinha tido uma relação sexual. Saí do consultório me sentindo um extraterrestre, comenta ela.

Sim, existe relacionamento amoroso
A Aven (Asexual Visibility and Education Network), fundada em 2001 nos Estados Unidos, é hoje uma das principais entidades representativas dos assexuais no mundo. Em seu site, define o assexual como pessoa que não sente atração sexual. Isso, contudo, não significa que essas pessoas não se relacionem, não se envolvam amorosamente.

Parte dos/as assexuais sente interesse amoroso e deseja estar em relacionamentos românticos, preferencialmente sem atividade sexual; porém, também existem aqueles/as que não têm interesse nem mesmo por parcerias amorosas, escreve Elisabete de Oliveira.

Outra constatação (…) é que alguns/mas assexuais românticos/as estão envolvidos/as em relacionamentos com pessoas não assexuais, surgindo a necessidade de negociação da existência ou frequência da atividade sexual, ou da formação de relacionamentos não monogâmicos, complementa.

Celibato
Assexualidade e celibato são conceitos diferentes. Enquanto o celibato é a escolha consciente pela abstinência sexual, apesar de existir atração, na assexualidade não há escolha, uma vez que não há atração sexual a ser reprimida. Por isso os assexuais enfatizarem que a assexualidade não é uma escolha, mas uma característica do sujeito assexual.

Ramificações da assexualidade

Assexual: Aquele indivíduo que não sente desejo, atração sexual por outras pessoas em nenhuma circunstância. Diferente do celibato justamente porque a assexualidade não é uma escolha, a repressão consciente do desejo, mas justamente a ausência dele.

Romântico: São aquelas pessoas que, embora não sintam desejo sexual, têm sentimentos amorosos por alguém (atração romântica). Essa categoria se divida em quatro subcategorias: os heterorromânticos (que têm atração por pessoas de outro sexo), homorromânticos (tem atração por pessoas do mexmo sexo), birromântico (atração por pessoas de ambos os sexos) e polirromântico (atração por várias pessoas do mesmo gênero).

Arromântico: A pessoa que não tem nenhuma ou quase nenhuma atração romãntica. Enquanto as pessoas romãnticas tem uma certa necessidade emocional de estar em um relacionamento romântico, os arromânticos se satisfazem com amizades e outros tipos de relacionamento que não sejam romântico.

Demissexual: Aquele que só consegue sentir atração sexual como consequência da atração romãntica, ou seja, quando mantém uma relação emocional com uma pessoa, a atração sexual pode acontecer, mas somente por aquela pessoa, por nenhuma outra.

Assexual cinza (Gray-A): Se encontra na chamada zona cinza percebida entre a assexualidade e a sexualidade , ou seja, fica praticamente em meio termo. É aquela pessoa que pode sentir desejo pela atividade sexual, mas muito pouco e em situações bem específicas e limitadamente.