Elza Soares nunca foi de falsa modéstia. Agora está impossível. Seu primeiro DVD, “Beba-me”, pela Biscoito Fino, chega com velhos sucessos, incluindo o primeiro da carreira, “Se Acaso Você Chegasse” (Lupicínio Rodrigues/Felisberto Martins), e passa por Chico e Caetano até desembocar no “Rap da Felicidade”, de Julinho Rasta e Kátia. O nome do DVD/CD é uma brincadeira com a música “Beija-me” (Roberto Martins/Mário Rossi). “Quero que me bebam até ficar sem palavras, que me engulam. Mereço que seja um enorme sucesso”, diz, estirada em uma poltrona no seu apartamento com vista para a Praia de Copacabana, no Rio.

O DVD foi gravado durante dois dias em março, em São Paulo, quando Elza ainda se recuperava de uma cirurgia para corrigir uma diverticulite. Estava com colostomia e muitas dores. Uma cadeira no palco serviu de apoio para os momentos mais críticos de agonia física. “É um DVD feito com sangue, suor, lágrimas e a mão de Deus.” Nada que inibisse a “mulata assanhada e tinhosa”, como ela gosta de se chamar. No meio da gravação, conseguiu até sambar um pouco. O resultado tem a cara de Elza Soares, que desde o início da carreira, nos anos 60, criou um estilo novo de cantar samba incluindo nuances do jazz. “Beba-me” com direção de José Miguel Wisnik e Wadim Nikitim, é um mergulho no passado, mas sem nostalgia.

Elza relutou em regravar antigos sucessos, como o ótimo “Estatutos da Gafieira” (Billy Branco). Não é uma questão de renegar o passado. “Não gosto de coisa repetida. Passado é horrível. Lembra dores, desespero”, diz a ex-lavadeira de Água Santa, subúrbio do Rio, e ex-mulher do craque Garrincha, morto há 21 anos, vítima de alcoolismo. Elza gosta mesmo é do presente “My name is now e meu sobrenome é dólar. Pra mim é tudo agora”, diz olhando apaixonada para o marido, Anderson Lugão, 31 anos.

Idade é assunto tabu para Elza, uma septuagenária com corpinho de balzaquiana. “O Brasil tem muito preconceito em relação a isso. Se eu tivesse nascido no Japão, na Europa, eu seria muito valorizada. Mas aqui, a filosofia é ‘tá velho joga fora’. Por isso, uso mini, mini, minissaia. Eu saio batendo na cara dessas pessoas que eu não tenho celulite, nem estria, nem varizes. Minha perna é lisinha.”

Melhor do que a perna está a voz. Há momentos sublimes em “Beba-me”, como “Pranto Livre” (Dida/Everaldo da Viola), que Elza canta um longo trecho sem microfone e sem acompanhamento dos músicos. É de arrepiar também sua versão para “A Carne” (Seu Jorge/Marcelo Yuka/Wilson Capellete). Os primeiros versos soam como um desabafo: “A carne mais barata do mercado é a minha carne negra.” Sua favorita é a regravação de “Palmas no Portão” (Walter Dionísio/D’Acri Luiz). O disco tem de tudo um pouco. “Eu sou funk, sou rock, sou hip-hop, sou samba, sou jazz. Sou tudo de música.”

O DVD tem 22 músicas e um extra com o making of do show, gravado por Marcos Altberg. José Miguel Wisnik explica que a escolha do repertório foi pelos sambas clássicos interpretados por Elza desde os anos 60, com uma formação metaleira que lembra as orquestras daquela época. “Vai se beber Elza na fonte”, diz. “Isto é a maneira sintética de dizer tudo sobre o princípio desta escolha e o que dá eixo ao trabalho.”

Wisnik, que dirigiu também outro CD de Elza, “Do Cóccix até o Pescoço”, de 2002, descobriu que ela era uma cantora contemporânea durante um show com João de Aquino no Sesc Pompéia em São Paulo. “Fiquei abismado de ver como ela era uma poderosíssima cantora contemporânea. Não era museu do samba. É uma deusa.”

Elza agradece os elogios. Eles ajudam a reforçar sua gana de seguir em frente, mesmo naqueles momentos em que fica mais recolhida. “São 40 e tantos anos de uma carreira que não pára de crescer.” E não deixa de fazer muitos planos. Depois dos shows que fez em São Paulo, ela seguiu para uma turnê no Chile e na Itália. Na volta, pensa em chamar a jovem Roberta Sá para fazer um trabalho Talvez um show, talvez um disco. “Pode ser uma coisa assim black&white, vai ser muito maravilhoso.” Roberta Sá é a única cantora da nova geração que Elza elogia. De resto, diz que gosta mesmo é de Maria Bethânia e Gal Costa.

O maior orgulho de Elza é sua capacidade de se reinventar. Toda vez que está meio sumida, ressurge em grande estilo. Foi assim na abertura dos Jogos Pan-Americanos do Rio, em julho, quando emocionou o público do Maracanã cantando o Hino Nacional. “Eu vou deixando a vida me levar, mas quando se esquecem de mim, pego a vida nas mãos com força, abro o meu lugar no mundo de picareta na mão.” Elza se sente a própria fênix, a ave mitológica que deixava-se arder em um braseiro para em seguida, renascer das próprias cinzas. E para não deixar dúvidas, tatuou um desenho da ave na batata da perna direita.