ARTUR RODRIGUES, DHIEGO MAIA, FERNANDA PEREIRA NEVES E LEANDRO MACHADO
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A Justiça decidiu nesta sexta-feira (26) que a gestão João Doria (PSDB) precisará sempre de uma autorização judicial para promover internações à força de usuários de drogas na região da cracolândia. A internação compulsória continua a depender tanto de uma avaliação médica como, em seguida, de uma decisão judicial.
Segundo a decisão liminar (provisória) do juiz Emílio Migliano Neto, por um período definido de 30 dias, agentes sociais e de saúde, com a ajuda de guardas-civis, poderão retirar à força os usuários da região da cracolândia para uma avaliação de psiquiatras e médicos e posterior de um juiz. Esse tipo de abordagem não era permitida e sempre deverá ser individualizada e feita só a maiores de 18 anos.
O Ministério Público e Defensoria Pública vão recorrer da decisão do juiz, que decretou segredo de Justiça para o caso.
A solicitação da gestão Doria foi feita às pressas nesta semana. Ela ocorreu após a desarticulada ação no último domingo (21), quando policiais civis e militares, ligados ao governo do Estado, prenderam traficantes e desobstruíram três vias tomadas havia anos por viciados. O novo programa anticrack de Doria, porém, não estava pronto. Uma das promessas era o cadastramento prévio dos usuários, para que recebessem encaminhamentos corretos, como tratamento médico. Sem isso, em meio a ações atabalhoadas e discursos oficiais dissonantes, o que se viu foram viciados espalhados pelas ruas e a formação de uma grande concentração deles na praça Princesa Isabel.
A prefeitura afirmou, em nota, que a decisão permite abordagens individualizadas dos dependentes químicos. “A prefeitura reitera que este é um instrumento a ser utilizado em última instância e com total respeito aos direitos humanos”, afirmou.
Atualmente, a lei já permite que um médico, mediante laudo psiquiátrico, peça ao juiz a internação compulsória. No entanto, até então, o dependente teria que concordar com o encaminhamento para essa avaliação.
A decisão favorável à retira de dependentes das ruas à força contraria parecer do Ministério Público e da Defensoria Pública, que entraram com pedidos na Justiça contra a solicitação do prefeito.
Na última terça (23), quando a prefeitura encaminhou o pedido à Justiça, Anderson Pomini, secretário de Negócios Jurídicos, afirmou que a utilização da força seria a “última alternativa” para casos graves de dependência. A prefeitura não respondeu onde essas pessoas seriam internadas.
Advogados consultados apontam que a medida de Doria não tem amparo legal.
Segundo Roberto Dias, professor de direito constitucional da Fundação Getulio Vargas, a internação compulsória é uma prisão disfarçada de tratamento clínico. “A pessoa só pode ser presa se cometer um crime. O usuário de drogas não é criminoso e está causando um mal só para si mesmo”, diz.
Ainda de acordo com Dias, privar o usuário de liberdade em razão do vício poderia gerar outras implicações jurídicas no futuro. “A vítima teria todo o direito de entrar na Justiça com ações de reparação moral e financeira por conta de uma violação muita clara de seus direitos.”
Humberto Barrionuevo Fabretti, professor de direito penal do Mackenzie, vê outro problema. A prefeitura, segundo ele, não poderia, sozinha, ter feito esse pedido à Justiça.
“Ela não tem obrigação legal de cuidar da saúde psíquica de seus cidadãos”, disse. Para Fabretti, a medida foi um ato de desespero “para abafar a ação policial desastrosa na cracolândia”, disse.
A saída, segundo Fabretti e Dias, seria construir uma nova política articulada entre os órgãos responsáveis por autorizar o melhor tipo de tratamento para os viciados em drogas, como Ministério Público e a Justiça.
O promotor da área da saúde, Arthur Pinto Filho, chegou a chegou a classificar o pedido de Doria como o “mais esdrúxulo que eu já viu em toda a carreira” e que a iniciativa, caso fosse aceita, promoveria “uma caçada humana”.
Duas das três clínicas indicadas à Justiça para receber os dependentes internados compulsoriamente nem oferecem o serviço de internação de usuários de drogas, segundo reportagem do jornal “O Estado de S. Paulo”. Uma delas estaria fechada há pelo menos três meses.
Antes de a decisão judicial sair, Geraldo Alckmin (PSDB), parceiro de Doria na operação da cracolândia, afirmou que não mudaria a estratégia de convencimento dos usuários a entrar no tratamento por vontade própria. O programa estadual de reabilitação, Recomeço, só faz internações à força com mandados judiciais acordados também com a Promotoria.
“O Recomeço tem quatro anos e meio, internamos 13 mil pessoas. Só 28 foram compulsórios, com ponto de vista psiquiatra, aval do Ministério Público e da Defensoria. Não há nenhuma possibilidade do Recomeço sair desse rumo, que é traçado cientificamente”, disse David Uip, secretário de Saúde de Alckmin.
O Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo) já havia dito que o médico que realizasse o tipo de internação compulsória planejada por Doria poderia responder a procedimento no órgão.
Na noite desta sexta, o conselho reiterou sua posição em uma nota divulgada com orientações aos psiquiatras sobre internações compulsórias, que, segundo o órgão, deve ser fundamentada minuciosa e individualmente e submetida à decisão judicial. “É absolutamente necessário que se observe que o ato médico da consulta psiquiátrica deve preceder a todo procedimento de hospitalização forçada”, afirma.
“O Código de Ética Médica contém as normas que devem ser seguidas pelos médicos no exercício de sua profissão. A legislação garante ao profissional autonomia suficiente que lhe permita recusar-se a realizar atos médicos que sejam contrários aos ditames de sua consciência e ao melhor interesse da saúde de seu paciente”, destaca.
O conselho diz que isso fere dois artigos do Código de Ética Médica. Um diz que é proibido “deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal”. Outro veta “deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo”.
Para o psiquiatra da Escola Paulista de Medicina Dartiu Xavier, que trata dependentes químicos há 28 anos, a intenção da prefeitura é uma “loucura do ponto de vista médico, para não falar na afronta aos direitos humanos”.
O médico diz que 75% dos usuários de crack não são viciados e, dentre os que são, só 1% está psicótico, sem noção da realidade. Apenas nesses casos é recomendada a internação compulsória.
Segundo Xavier, a forma mais eficaz de tratamento são modelos ambulatoriais como Centros de Atenção Psicossocial. “A dependência não é indicação de internação compulsória, que é uma ação médica excepcional, nunca uma política de saúde”, afirmou.
Ana Cecília Marques, coordenadora do conselho consultivo da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas, diz que esse tipo de intervenção só serve para casos em que há alta vulnerabilidade, risco de morte e dificuldade de decisão da própria vida. “Sou totalmente a favor, mas para esses casos, que são a minoria da minoria.” Marques não vê problema sobre a decisão caber só ao agente de saúde da prefeitura. “Acho que é até melhor não ser um juiz quem define.”
Davi Quintanilha, do núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública, diz que foi feito um pedido genérico de busca e apreensão de pessoas para realizar internações forçadas. “É totalmente ilegal. Tem que diferenciar emergência médica de internação.”
MINICRACOLÂNDIAS
A dispersão da região conhecida como cracolândia teve início após operação policial do governo do Estado, ocorrida no último domingo. Apesar da remoção do aglomerado de pessoas e das barracas da alameda Dino Bueno, outras 23 minicracolândias surgiram na região central de São Paulo.
O maior está na praça Princesa Isabel, a apenas dois quarteirões da antiga cracolândia. De quinta para sexta-feira, o número de pessoas no local dobrou de 300 para 600, e os comerciantes já relatam problemas como furtos, cortes de fiação de energia elétrica e redução significativa no número de clientes.