ARTUR RODRIGUES E GIBA BERGAMIM JR. SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Este é um produto abençoado”, disse no início do mês o prefeito João Doria (PSDB), antes de retirar de um pote com a imagem de Nossa Senhora e degustar o “granulado alimentar” —espécie de biscoito feito à base de alimentos perto da data de validade. Anunciado pelo tucano como algo para ajudar a erradicar a fome em São Paulo e no país com apoio da Igreja Católica, o produto foi alvo de uma série de críticas de nutricionistas e chefes de cozinha, ganhando inclusive o apelido de “ração humana”.

A gestão, no entanto, ainda nem discutiu a iniciativa e não tem nem sequer estatísticas de quantas pessoas na cidade de São Paulo vivem em situação de insegurança alimentar —termo usado para descrever grupos carentes de alimentos necessários à boa nutrição.

Dados do IBGE de 2013 apontam 1,5 milhão de pessoas nessa situação, em nível grave, em todo o Estado, e 7,2 milhões no país. O prefeito, que se posiciona como candidato a presidente no ano que vem, prometeu que esse produto será distribuído em igrejas, templos, entidades da sociedade civil e pela própria prefeitura.

Doria o associou a um biscoito de polvilho, mas também foi chamado por ele como “comida de astronauta”. Nesta segunda (16), o Conselho Regional de Nutrição, por exemplo, emitiu nota na qual condena a política. O granulado é um dos produtos derivados da farinata, farinha feita com alimentos perto da data de validade que seriam descartados por produtores ou revendedores. Idealizada pela organização Plataforma Sinergia (sem fins lucrativos), é usada também para ser adicionada a bolos e pães ou como um ingrediente para “reforçar” sopas.

Os críticos defendem a tese de que o combate à fome deve ser feito com alimento in natura. A chef Janaína Rueda, por exemplo, divulgou uma carta ao prefeito criticando a falta de diálogo com a sociedade. Na avaliação dela, alimentar-se é um ritual de preparo e degustação, algo que, segundo os críticos, o granulado não oferece.

Aliados políticos e pessoas próximas ao prefeito dizem que o erro dele foi a divulgação da medida associada à propaganda do produto, mas sem dar detalhes de como a ação será executada. A secretária municipal de Direitos Humanos, Eloísa Arruda, afirmou que a discussão em torno do granulado deixou de lado o principal: a sanção do projeto —de autoria do vereador Gilberto Natalini (PV)— prevê a política de combate ao desperdício e erradicação da fome. “São milhões de alimentos de qualidade jogados no lixo diariamente [na cidade].

A política é para evitar isso e ajudar populações carentes.” Fundadora da Plataforma Sinergia, Rosana Perrotti, disse que conheceu Doria no dia do evento de sanção da lei. Segundo ela, o granulado é só um dos produtos possíveis. “Toda criança gosta de pipoca.

Pensamos num produto que parecesse com uma pipoca, só que saudável. Foi a amostra que levei”, disse. Consultora em empresas farmacêuticas e alimentares, ela disse que desenvolve iniciativas de combate à fome desde 2013, quando um projeto foi apresentado à Câmara dos Deputados. O texto foi aprovado lá neste ano e está sob análise do Senado. Para o autor do projeto municipal, a divulgação da lei foi “atropelada e de mau gosto”. “Meu projeto é para mostrar que o combate ao desperdício e à fome tem que ser uma política”, disse.

IGREJA

O cardeal dom Odilo Scherer, arcebispo de São Paulo, afirma que pode ter havido “algum equívoco” na forma de divulgação. “Isso não é um projeto do prefeito. O apoio [da Igreja] a essa iniciativa vem de longe”, disse. Para o cardeal, seria uma pena se o projeto fosse cancelado.

“Eu acho que seria uma pena algo que nasceu para ser bom, por equívocos ou manipulação política, seja de qual lado for, venha a ser de alguma forma amputado ou boicotado”, afirmou. Segundo ele, o composto é de boa qualidade. “Provei os produtos feitos a partir da farinata e não teria problemas em consumi-los todo dia.”

Franciane Lopes de Souza, nutricionista que participa do projeto, afirma que a farinata pode ser feita com qualquer alimento. Ela diz que que a ideia já passou por fase de testes que comprovam que o composto não prejudica a saúde e agora atua para criar um balanceamento do ponto de vista nutricional. Segundo ela, o processo de transformação de alimento no composto é similar ao utilizado para fabricação de leite em pó.

Com isso, um produto perto do vencimento de validade ganharia uma vida útil muito maior. Para Franciane, o propósito do projeto ainda não foi bem compreendido. “Vai demorar para as pessoas entenderem. Eu já vi a fome porque participei de projetos sociais na seca no Nordeste, e você vê criança que come barro e terra porque é o que ela tem na frente para comer.”

O médico nutrólogo Celso Cukier, do Instituto de Metabolismo e Nutrição, afirma que o projeto pode vir a ser interessante para pessoas sem acesso a alimentação adequada, mas que há muitas lacunas a respeito. Uma delas é a composição da farinata. Porque, se um dia nós estamos dando um produto muito rico em carboidratos ou muito rico em alguma substância única sem as outras acompanhando, não vamos combater essa desnutrição de forma correta.”

Um dos criadores do projeto, o engenheiro Ivan Baldini, afirma que o produto pode também ser consumido sozinho em situações de emergência. “Pode ser consumido in natura até que o socorro chegue, pois a embalagem para este fim é resistente a possível arremesso por aviões.”