MAURÍCIO MEIRELES
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O novo romance de George Saunders é uma orquestra de vozes. Cento e sessenta e seis narradores contam a história de “Lincoln no Limbo”: em sua maioria, fantasmas que assistem a um pai consternado visitar o túmulo do filho, tirar o corpo do caixão e chorar debruçado sobre ele.
O pai é um dos vultos da história americana, o presidente Abraham Lincoln (1809-1865) -mas o Lincoln no limbo, do título, é o filho do político. Willie morre de febre tifoide aos 11 anos, no momento em que os Estados Unidos se empenham na guerra fratricida do norte contra o sul.
O romance rendeu ao escritor o Man Booker Prize do ano passado, maior prêmio da língua inglesa, e um cipoal de elogios. Até o recluso Thomas Pynchon saiu das sombras para dizer que Saunders mostrava “uma voz afinada, graciosa, sombria, autêntica e divertida”.
“Tive a ideia de escrever sobre Lincoln há 20 anos. Mas achava que era como escrever sobre Jesus Cristo, sobre quem todo mundo já escreveu, e ia adiando. Uma hora, vi que a ideia de Lincoln visitando o túmulo do filho era tão comovente que resolvi escrever”, diz Saunders.
Este não é, contudo, um romance histórico. A narrativa se passa no além –e é pelas vozes dos fantasmas do cemitério, que auxiliam a criança, que o leitor acompanhará tudo. Também pelos documentos históricos, reais e inventados, que não concordam nem sobre a cor dos olhos do presidente enlutado.
O limbo que dá nome ao livro, no título original, é o bardo, espaço entre a morte e o renascimento no budismo tibetano.
Os fantasmas são bêbados, suicidas, uma mulher avarenta, uma mãe, um soldado e por aí vai -eles desfilam suas vozes ora poéticas, ora burlescas, ora bizarras.
EREÇÃO ETERNA
Mas há três principais.
Uma é a de Hans Vollman, que morreu prestes a transar com sua mulher e por isso carrega para a eternidade uma ereção. Outra é Roger Bevins 3º, que cortou os pulsos ao ser abandonado pelo amante, mas se arrepende ao se ver fulminado pela beleza do mundo.
Entre eles, fica o reverendo Everly Thomas, uma espécie de voz da razão.
Pode ser difícil acreditar que um romanção de estrutura tão complexa não tenha sido meticulosamente planejado, mas Saunders jura que foi uma escrita intuitiva, um mergulho no inconsciente.
“Tentei escrever de um jeito tradicional, mas não tinha energia, era falso e entediante”, diz o autor, inspirado em “Enquanto Agonizo”, no qual William Faulkner também apresenta um narrador defunto.
“Flannery O’Connor tinha uma frase da qual gosto muito: um autor pode escolher o que escreve, mas não o que traz à vida.”
O romance promove um encontro entre os interesses estéticos e espirituais de Saunders, “meio budista, meio católico”, sem tornar o livro uma lenga-lenga carola.
“Esses dois interesses são a mesma coisa. Quando você lê uma história, começa a pensar nas grandes questões: o sentido da vida, se há bem e mal.”
“Sempre li buscando aprender algo sobre as formas de viver. Budismo e catolicismo dizem o mesmo: devemos olhar a realidade sem obstáculos e tentar ver a verdade. Isso é o sagrado.”
Os fantasmas, presos no limbo pela prisão a hábitos ou pequenas obsessões, também são exemplo das meditações espirituais do escritor.
“Uma vez, quando tive um pensamento e outro em sequência: “Nossa, já pensei isso milhares de vezes na vida. É tão interessante. Sinto-me um ser livre, mas penso isso repetidas vezes. É budismo, mas é o mesmo que o catolicismo diz sobre o pecado.”
O acontecimento central do livro -a morte de uma criança antes de seus pais- pode dar a impressão de um livro melancólico. Mas há bastante humor na escrita do autor americano.
“Lembro-me de ir a um funeral muito triste. Quando saí do cemitério, em um restaurante do outro lado da rua, havia um cara com uma fantasia enorme de rato, com a cabeça de lado, fumando um cigarro. Na vida real, tragédia e comédia acontecem ao mesmo tempo.”
Em uma arte com frequência tão pessimista como a literatura, os personagens acabam por tomar atitudes positivas -como os fantasmas, que ao verem o amor do pai pelo filho morto, descobrem que também podem ser amados. Comovidos, resolvem ajudar o garoto.
“Também não planejei esse padrão de ações positivas. [Dizer que] a arte deveria mostrar sempre a transgressão, o fracasso, a maldade, é uma deformação. Não queria mostrar uma bondade falsa. Mas, para alguém com 60 anos, isso tem que ter um lugar na mesa.”
Saunders vê “Lincoln no Limbo”, de certa forma, como uma investigação sobre a empatia -como o é toda ficção.
“Você lê ‘Era uma vez um rapaz que caminhou até um abismo’ e na hora sente empatia por ele. Por que ele fez isso? Estaria cansado? Na ficção, você olha um ser imaginário que evoca diferentes campos da sua mente.”