O que é beijado pelo boxeador nocauteado? Como se escreve 53 em números romanos? Anuro comestível, com duas letras? Qual é a língua falada no Djibuti? Qual a capital do Azerbaijão? Expressão atribuída a Sherlock Holmes? Qual é a mistura cortante de linhas de pipas?

O que é que as palavras cruzadas têm? A cultura milenar de um passatempo que ganha status de esporte com direito a torneio mundial, realizado recentemente em Dakar, no Senegal, cresce em títulos nas bancas de jornais (são mais de 20), ganha novas modalidades e chega até a levantar discussões de especialistas. Palavra cruzada vicia?
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“Este tipo de jogo não causa dependência, mas existem pessoas que têm compulsão por palavra cruzada, assim como existem pessoas que têm compulsão pela internet ou até mesmo por ler obituários de jornais”, explica a neurologista Valéria Santoro Bahia, especializada em neurologia cognitiva (ramo que estuda a memória).

O torneio mundial, que no ano passado teve o Rio de Janeiro como sede, é retrato do nível de profissionalização que o jogo tem atingido. Anualmente, são cerca de 600 competidores de 21 países diferentes, incluindo o Brasil. O País é o quarto maior mercado do mundo, atrás de Estados Unidos, França e Itália

A reportagem foi saber com especialistas no quebra-cabeças como uma palavra cruzada ganha vida. “Profissionais de áreas como Medicina, Direito e Letras trabalham na criação. Temos um banco fixo com mais de meio milhão de perguntas”, diz Henrique Ramos, diretor editorial da Coquetel, empresa que publica o passatempo em mais de 600 jornais do País, desde “O Liberal”, do Amazonas, até o “Zero Hora”, do Rio Grande do Sul.

Há pelo menos outras seis empresas no mercado que dividem as estantes com a Coquetel. Julio Igliori, diretor da editora Iglu, que publica a revista “Almanaque dos Passatempos”, foi além e se tornou um cruciverbalista (nome que leva um criador de palavras cruzadas). Ex-professor público, viu que no mercado não existiam palavras cruzadas de matemática e lançou o Números Lógicos. “Quero estimular as pessoas a aprenderem mais matemática.”

Até o produto final, a página de cruzadas passa por três estágios. Os dois primeiros consistem em colocar letras em seus respectivos espaços. “Colocamos no diagrama apenas as respostas, sem a pergunta”, explica Ramos.

Julio Igliori lembra que o nível varia de acordo com a pergunta, não com a resposta. O ‘anuro comestível’ do início da matéria é colocado no difícil. Já se a pergunta fosse ‘anfíbio que vive no brejo’, estaria no fácil. A resposta para ambas: rã.

A produtora editorial da Coquetel, Lívia Gonçalves Barbosa, é responsável pelo setor que resolve todos os passatempos antes de eles irem para as bancas. “Temos de observar se os cruzamentos não impedem a resolução e se as perguntas estão agregando valor às pessoas”, explica. O setor de Lívia também é um dos responsáveis por receber o retorno dos leitores. “Eles têm a palavra cruzada como um hábito diário, quase um vício. Mas um vício saudável”, garante.

Dois desses leitores chamaram a atenção da produtora. A primeira foi uma senhora que, após visitar o psicólogo, recebeu a recomendação de que não poderia sofrer fortes emoções. “No dia seguinte, ela nos ligou, muito nervosa, por não conseguir resolver o passatempo de lógica. Ela queria que a gente informasse a solução. Caso contrário, não iria se acalmar”, lembra.

Em outro caso, um leitor ligava diariamente para a editora pedindo as soluções das cruzadas publicadas nos jornais. “A solução só era publicada no dia seguinte e ele não conseguia conter a ansiedade. Depois de um tempo, os jornais passaram a publicar as respostas no mesmo dia.”

A operadora de caixa Cristina Mota dos Santos, 28 anos, é uma dessas leitoras que não vivem sem as cruzadinhas. “Faço as publicadas nos jornais e compro todo mês uma revistinha na banca”, diz. Quando termina de resolver tudo e não encontra mais passatempos disponíveis, Cristina apela para a internet. “No site, tem as cruzadas online. Lá é mais difícil porque há limite de tempo.”

Em casa, a atendente proibiu a mãe de cancelar a assinatura do jornal. E se, numa hipotética situação, pararem de publicar os passatempos? “Eu iria na banca e compraria todas para ter em estoque”, brinca. Outro fã declarado das cruzadas é o ex-presidente americano Bill Clinton. Em diversas oportunidades, ele já disse ser “viciado” nos passatempos do jornal “The New York Times”.

A neurologista Valéria Bahia diz, no entanto, que, ao contrário do que se diz por aí, o simples fato de se resolver uma palavra cruzada não é a solução para se chegar a uma memória melhor. “É recomendado sempre manter uma atividade intelectual, como ler, ir ao teatro e conversar com amigos, e também fazer exercícios físicos.”

Valéria concorda que o passatempo possa ajudar a postergar doenças cognitivas, mas afirma que o exercício é pobre com relação a tudo que pode ser feito para estimular a memória “A pessoa deve se concentrar nos trechos que está lendo, reler e repetir em voz alta. Ou seja, deve fazer com atenção.”