Tenho estado um pouco obcecada com a produção literária curitibana, e isso vale para textos teatrais.

Por isso foi um bálsamo conhecer essa gente linda que cursou o Núcleo de Dramaturgia do Sesi em 2017, onde tive bons momentos também. Depois da realização de uma mostra dos trabalhos, dia 25 de novembro, surgiu a ideia de publicar alguns dos textos aqui no blog “A vida é palco”. Para que não esmoreçam até o momento de finalmente encenar! Né, Juliana??

A Juliana Partyka será a primeira a publicar.  Aqui estão o prólogo e a Cena 1. O restante virá a conta-gotas, porque o texto é longo e requer, digamos… tempo de digestão.

“O VELHO”, de Juliana Partyka

OBRA DESENVOLVIDA NO NÚCLEO SESI DE DRAMATURGIA – 2017

PERSONAGENS:
TEREZA
MARIANA
GIO

velho
PRÓLOGO: ELAS ANDAM EM LINHAS RETAS, DA SUA MANEIRA.

TEREZA: As coisas me comovem. Todas as coisas. Os pedaços de coisas. Os
reflexos. Quando éramos pequenas, a gente. Como é mesmo que dizem?
“Agora você vai chorar com motivo”? E também quando éramos pequenas as
coisas, essas que tocam a gente, tinham dimensões particulares. Únicas. O
Velho era o mesmo. Os móveis. Os quadros. As samambaias. Tudo refletia
uma espécie de memória que não se sabe colocar em letras. Nos lábios. No
riso. Na comoção. Tudo me comove. Quando ela veio, parecia uma
bonequinha assim pequenina, minúsculas mãozinhas fofas e cheirosas. Um
doce de gente. Um encanto. Uma mini vida. Eu, a mais velha, esperava que
ela, e as mini mãos que ela tinha, servisse pra trazer paz. Uma espécie de paz
utópica que, no fundo, só se alcança quando a gente morre. A outra já tinha
tentado o mesmo feito. Não por vontade própria, mas por não ter escolhido vir
pra esse mundo, e mesmo assim, ter carregado a mesma responsabilidade de
“agora vai ser diferente”. O Velho é o mesmo. Acho que sempre foi. A minha
distância dele, o asco, o motivo pelo qual eu gostaria de dançar em cima do
caixão dele é, exclusivamente, por ele ter boicotado as duas tentativas de paz
que vieram depois de mim. Eu as amo tanto que chega a escorrer pelo meu
coração. Eu me comovi sempre, sempre. Quase sempre. O Velho não. Por ele
nunca. Talvez alguém antes de mim esperasse a paz. Talvez tivessem
depositado em mim a mesma esperança que eu joguei nelas alguns anos
depois. E não as culpo por nunca terem conseguido. No final, acho que foi
melhor assim. É como se tivessem arrancado um pedaço de mim, e desse
pedaço, surgido uma carga a mais de energia para tentar outra vez. E outra. E
assim até quando Deus quis.
Quando ela veio morar comigo uma outra espécie de comoção invadiu o meu
peito, e eu chorei de felicidade. Naquele dia em que falávamos de potes, e receitas para fazermos experimentos culinários, eu. A comoção. Naquele dia eu chorei. Eu estava tão feliz. Tão feliz. Então eu pensei no Velho. No quanto ele nos uniu de formas tão diferentes, em quem somos, e os medos que carregamos na bagagem. Maldito. Eu pensei. Eu quero dançar em cima do teu caixão, mas antes quero te agradecer. Pela comoção. E por elas. E pela esperança que eu carrego pelos cachorros de rua. Eu vou dançar em cima do caixão dele, e vou me comover toda vez que eu pensar. O Velho nunca me comoveu.

CENA UM – QUANDO TUDO ACONTECE, O QUE FICA DEPOIS É O BURACO NO MEIO DO PEITO.

GIO: Será que cachorro tem alma? Há dois dias só chove. Chove. Quem sabe
a chuva sirva para levar as almas para o céu. Ouvi dizer que.
MARIANA: Que?
GIO: Não sei. Fiquei pensando nisso ontem enquanto esquentava a comida da
Tereza.
MARIANA: Eu não sei nem se gente tem alma, imagina um cachorro!
GIO: Então tem. Sempre que você não sabe de alguma coisa a resposta é
sim.
MARIANA: Tereza comeu?
GIO: Um pouco. Ficou chorando por causa dele. Parecia um bebê!
MARIANA: Coitada…
GIO: Tua mãe veio aqui mais cedo, quer te arranjar um emprego nem que seja
de puta.
MARIANA: Puta eu já sou. Só não cobro por isso. Ela quer dinheiro, velha
idiota!
GIO: Você vai sair?
MARIANA: Talvez. Se algum cliente ligar…
GIO: Estou falando sério.
MARIANA: Não. Nem quero. Tua mãe é louca!
GIO: O cachorro fica latindo.
MARIANA: Que?
GIO: No meu ouvido. Escutei ontem e hoje. Deve ser um cachorro da
vizinhança, mas a gente acostuma com o bicho por perto. Tereza até serviu
comida no pote dele hoje mais cedo.
MARIANA: Ela tem saudade. Quem sabe pensa que ele pode voltar.
GIO: Eu escuto a outra lá no quintal. A mais nova. Uiva e chora a noite toda. Às
vezes de dia também. Tem que ir até lá com um pedaço de pão, e fazer
carinho na cabeça até ela comer tudo. O que deu da entrevista?
MARIANA: Nada. Disseram que iam ligar no dia seguinte.
GIO: Mas isso foi semana passada!
MARIANA: Foi o que eu disse.
GIO: Ela tá querendo ir ao centro espírita…
MARIANA: Que?
GIO: A Tereza. Tá querendo falar com o cachorro.
MARIANA: Não dá pra julgar. Uma vez eu fui lá com a Rosa e a entidade
escrevia até os segredos dela no papel. Com a mesma letra do falecido.
Nessas horas a gente tenta meio de tudo.
GIO: Mas é um cachorro! E cachorro não escreve!
MARIANA: Cada um lida de um jeito.
GIO: Isso pra mim é coisa de louco. Olha lá! Tá chorando de novo. Um
gemidinho assim, pequeno. Da primeira vez que ouvi achei que era pulga
comendo o couro dela. Se não tomar cuidado infesta a casa inteira.
MARIANA: E não era?
GIO: Não. Ela estava deitada com a cara apoiada nas duas patas. Uma remela
branca saía dos olhos dela. Bem molhados. Parecia que tinha enfiado a cara
no pote de água.
MARIANA: O bicho sente também. Por que você sempre diz a TUA mãe?
GIO: Não sei. Hábito. Mas acho que sente.
MARIANA: Ela viu quando aconteceu?
GIO: Viu. Estava do lado. Mijou em cima dela. Fiquei com raiva na hora. Já não
gosto de lavar cachorro, lavar cachorro defunto pior ainda.
MARIANA: Tereza viu?
GIO: Não. Chorou de manhã e à tarde. Tirou o cachecol do pescoço e enrolou
nas patas do bicho. Na hora ela saiu.
TEREZA: Eu não me despedi. Não sei, na verdade. Fiquei refletindo o que
significa despedida. Ninguém sabe. Eu só fiquei olhando ela lá. Tinha uns
espasmos nos olhos. Fechava uma vez, eu achava que era a última, e tornava
a abrir. Assim por várias vezes. Eu não me despedi exatamente naquela hora,
mas depois comecei a pensar que já tinha feito isso a semana inteira. De um
modo estranho, eu sei, mas aos poucos. Cada coisa que eu fiz nessa semana
era um jeito de despedida.
MARIANA: A previsão diz que vai chover o dia inteiro.
TEREZA: A terra vai afundar.
MARIANA: Pelo amor de Deus!
TEREZA: Afunda! Não é sobrenatural. É natureza.
MARIANA: Você tá bem?
TEREZA: Acho que sim. Não sei. Tua mãe diz que é exagero, mas eu senti
uma pontada aqui ó, bem no meio do meu peito. Coisa de hábito. Não importa
quão ruim seja a situação, se ficar exposta a isso por um tempo longo, então,
você se acostuma.
MARIANA: Ela descansou.
TEREZA: Que ridículo! Parece que tá falando de gente. Não carece palavras
fúnebres não, eu sei que era um cachorro. Mas era minha, e eu era dela.
Desde antes de vir morar aqui já era assim.
GIO: Quem sabe você possa ter outro.
TEREZA: Não!
GIO: Tá.
MARIANA: Quando você sente tristeza, tem que pensar em algo positivo.
TEREZA: Tá.
MARIANA: É sério.
TEREZA: Olha quem fala! A desempregada do ano, a que não consegue
emprego nem de puta!
MARIANA: …
TEREZA: Desculpa.
MARIANA: …
TEREZA: Quando eu fico triste eu penso nela. Se eu derrubo um vaso, e ele
quebra, eu começo a chorar. Não pelo vaso. Por ela. Quando eu brigo com
alguém eu fico triste. Não pela briga. Por ela. Eu penso nela todo tempo. Eu
pego a câmera fotográfica e vejo as fotos dela. Se ela não fosse um cachorro,
eu estaria chateada por não ter me dito que estava indo. Mas não. Eu só fico
triste.
MARIANA: …
TEREZA: Será que passa?
MARIANA: Não.
GIO: Lógico que passa!
TEREZA: …
GIO: Você precisa comer.