O semblante jovem esconde a infinidade de histórias pelas quais Diogo Busse já passou. Com seus 30 anos recém-completos, ele assumiu no início deste ano a diretoria de Políticas Municipais sobre as Drogas, antes Secretaria Antidrogas de Curitiba. A grande diferença dentre os tantos que assumiram um cargo com a troca da gestão municipal está no fato de Diogo já ter sido um dos usuários assim como os que ele trabalha hoje. Sua escalada nas drogas começou aos 12 anos e parou somente 13 anos depois. Nesse período teve três internações, dias de sumiço, vivência nas ruas, passagem pelas favelas do Rio de Janeiro, até que uma luz – como ele mesmo chama – o fez ter forças para parar. João, hoje com seis anos, é o nome dessa luz que Diogo teve, com quase 25 anos, quando optou pela recuperação, opção que faz todos os dias ao acordar.

De lá para cá, ele estudou, se capacitou e decidiu fazer do seu problema um trabalho. Levantou a bandeira nas eleições de 2012, quando tentou uma vaga para vereador em Curitiba. Apesar de não ter sido eleito, conseguiu o que muitos passam uma vida sem alcançar: uma oportunidade de empregar seu conhecimento de vida para ajudar a vida dos outros.

Um pouco desse conhecimento fundamentou a nova Política Municipal sobre Drogas de Curitiba, lançada pelo prefeito Gustavo Fruet (PDT) no último dia 19.

Para falar sobre sua história e seu trabalho, Diogo Busse conversou com o Bem Paraná. Confira: 

Bem Paraná — Você pode nos dar um histórico de como começou o seu problema com as drogas?
Diogo Busse — Embora eu tenha sido sempre um aluno muito dedicado, nunca perdi nenhum ano na escola e nem na faculdade, eu me envolvi com drogas muito cedo. Meu primeiro contato com drogas foi dentro da própria escola. Eu estudei nas melhores escolas particulares de Curitiba, meus pais são casados há mais 30 anos, sempre tive a família muito unida e mesmo assim o meu primeiro contato com a droga foi dentro da própria escola. E foi com o cigarro. Aos 22 anos, quando me formei em Direito, já estava bastante comprometido. Por contra dessa escalada do meu envolvimento com as drogas, quando me formei, acabei meio perdido do ponto de vista profissional. Foi aí que eu me afundei literalmente. Me vi diante da situação de reconhecer que eu tinha um grave problema e precisava de ajuda, então pedi para minha família e fui internado. Passei por três internamentos e tive uma luz, uma nova perspectiva quando eu fiquei sabendo que me tornaria pai. Foi a partir daí que eu comecei efetivamente a entrar em recuperação. Meu filho vai completar 6 anos e desde então  nunca me viu usando nenhum tipo de droga, nenhuma substância lícita ou ilícita.

BP — E como foi essa escalada?
Busse — O primeiro contato foi com o cigarro através de um amigo com 12 anos. Pouco tempo depois, eu já tinha feito uso de maconha. Com aproximadamente 15 anos eu conheci a cocaína. Acredito que pouco importa a substância em si, mas daí para as outras drogas foi um passo. Só não cheguei a usar droga injetável. Todas as drogas são um problema, mas posso dizer que o álcool é o maior problema. É onde tudo começa, é quando você perde a sua capacidade de dizer não.

BP — Qual era a sua rotina em torno dessa dependência?
Busse — Primeiro o teu organismo vai desenvolvendo uma tolerância e depois isso vai fazendo parte da tua cultura, do teu dia a dia, da tua rotina, até um determinado ponto em que chega a ser involuntário. Você perde o poder, o discernimento, a liberdade de escolha entre usar ou não, a capacidade de dizer não. Nos últimos anos da minha relação com as drogas eu não usava diariamente, mas quando eu usava ia cada vez mais fundo. Eu passava dias fora de casa, vivendo na rua.

Bem Paraná — A sua família acompanhou essa escalada ou soube quando você já havia se tornado dependente químico?
Busse — Desde a primeira vez que eu usei drogas, quando eu usei maconha, meus pais já souberam, mas não sabiam como lidar com a situação. É uma das questões interessantes e que baseiam meu trabalho hoje, que é a orientação à família, que adoecem tanto quanto o usuário. A maioria das famílias não tem condições de ajudar porque não tem orientação, não sabe como lidar diante dessa situação. Hoje temos uma cultura do terror, do medo. Há 100 anos a gente passa para os filhos que a droga mata, coloca na cadeia. Com 12 anos você tem o primeiro contato com a droga e não é nada disso que acontece. Nesse primeiro momento a gente perde qualquer vinculo de confiança, perdemos o ambiente de diálogo e é aí que se inicia uma perigosa escalada.

BP — No seu caso faltou diálogo?
Busse — Saber do problema é o primeiro passo, mas a questão foi o que fazer com esse saber. Hoje tenho muito claro que faltou um pouco de limite no meu caso.

BP — E como foram os seus internamentos?
Busse — Eu já estava muito mal, no fundo do poço e não queria mais usar drogas, mas não conseguia parar. Então pedi ajuda para os meus pais. Foi um primeiro passo para a minha recuperação, mas eu não tinha compreendido e nem aceitado a minha doença. Eu fui me tratar, mas ainda conservava dentro de mim um desejo de quem sabe, conviver socialmente com o álcool. Daí passava um tempo, seis meses, eu plenamente bem, mas tomava uma cerveja e pouco tempo depois já estava de novo nas drogas.  Na segunda vez em que fui internado aconteceu um grave episódio na minha vida. Fui parar no Rio de Janeiro e iniciei um período de uso de drogas muito intenso. Fiquei vários dias usando drogas e de repente quando tive um lance de lucidez, voltei para Curitiba. Foi aí que a minha família me internou contra a minha vontade. Isso aconteceu cerca de um ano depois da primeira internação. Mas novamente me senti curado, dei um jeito de burlar o tratamento e saí da clínica em pouco mais de um mês.


Desigualdade

 

Primeira mudança é de enfoque

Bem Paraná — Como foi que percebeu que o seu problema poderia ser uma bandeira de trabalho?
Diogo Busse — Primeiro eu compreendi que nesse processo todo que o que me levou para as drogas foi justamente a irresignação, o sentimento de desigualdade social, as injustiças. Isso me frustrava muito, eu acabei não sabendo lidar com isso e canalizei para as drogas. Quando entrei em recuperação, comecei a realmente fazer alguma coisa para melhorar primeiro a minha vida e depois eu quis ir além. Fiz trabalho voluntário de assessoria jurídica para essas famílias que não têm orientação. Ali eu percebi que havia uma falta generalizada de informação por parte de juízes, advogados, promotoria, e da família. Percebi que havia um campo de pesquisa vasto a ser explorado. Depois ainda estudei muito sobre o tema no mestrado e em uma comissão que criei dentro da OAB, para estudar o papel do Direito diante das drogas. Como meu sentimento de injustiça também era muito relacionado à política, resolvi me candidatar vereador em 2012. Eu sempre fui um cidadão muito indignado com a forma que se fazia política no nosso país. Acho que para mudar, temos que mudar a campanha. Comecei a mobilizar uma turma de amigos, que assim como eu não concordavam com o fato de uma pessoa gastar R$ 1 milhão em uma campanha para ser vereador. Fizemos a campanha essencialmente pelas redes sociais e no final tivemos 4.240 votos. No começo deste ano fui convidado pelo prefeito Gustavo Fruet para assumir a diretoria de política municipal sobre as drogas.

BP — Qual a grande mudança que você propõe nessa área?
Busse — A primeira grande mudança fundamental é o enfoque da política sobre drogas. Estamos trabalhando para que ela deixe de ser à base da repressão à substância e passe a ser o olhar para o usuário. Trabalhamos pela redução da demanda para a droga e não na redução da oferta de drogas. As drogas sempre estiveram presentes na história da humanidade e sempre vão estar. Nossos três eixos fundamentais são prevenção, ampliação da rede de tratamento ao usuário de drogas e a reinserção social.

BP — O fato da diretoria que assumiu ter perdido a estrutura de secretaria como era na gestão anterior dificulta o trabalho?
Busse — Não. Na verdade quando eu presidi a comissão da OAB eu já defendia a possibilidade de nós reduzirmos o quadro de servidores da secretaria, desde que capacitássemos os servidores. É isso que estamos fazendo hoje. Houve redução de estrutura, mas um ganho de qualidade. Eu vim com a tarefa de ser um gestor da política municipal sobre drogas, articulando todas as secretarias que de alguma forma, dialogam, enfrentam o problema das drogas. Para isso criamos um comitê gestor municipal sobre drogas com a participação da Secretaria de Saúde, Educação, Comunicação, Esporte e Lazer, Fundação Cultural e Fundação da Assistência social. Quando criei o grupo na OAB percebemos que existiam varias iniciativas interessantes dentro dos respectivos departamentos, mas dispersas, que não se comunicavam. O problema das drogas exige uma abordagem multidisciplinar.


Internação

Não existe uma formula mágica para tratamento

Bem Paraná – Tendo sido internado sem seu consentimento, como você enxerga a internação compulsória?
Diogo Busse — Entendo o momento, a necessidade em casos extremos da internação compulsória. Eles são necessários algumas vezes para salvar a vida do próprio dependente químico. O problema começa quando a internação compulsória se torna a base de uma política pública. Minha preocupação é que se olhe para o usuário de drogas como uma massa uniforme de pessoas que você pode indistintamente recolher em um local onde teoricamente eles vão receber um tratamento. Não é assim que vai se resolver o problema. Não existe uma formula mágica para solucionar. A internação compulsória esta sendo difundida como uma solução mágica para o problema, e ela não é. Além disso, desvia o foco de atenção para dois problemas que acho importantes e urgentes: falta de estrutura do estado para tratar usuários de drogas e a cultura de disseminação do álcool.

BP — E a sua recuperação definitiva aconteceu quando?
Busse — Quando eu me desarmei, aceitei a doença. Sem dúvida aceitar é o primeiro passo. Foi só assim que eu entrei em recuperação. Humildade: é necessário ter humildade de reconhecer. Isso aconteceu com aproximadamente 24 anos, depois de 13 anos em contato com as drogas.  Quando eu saí da terceira internação coincidiu com o nascimento do meu filho. Ele era recém-nascido e desde então venho trabalhando pela minha recuperação. Costumo dizer que foi uma luz. Existe uma palavra que também é fundamental num processo de recuperação: disciplina. Eu levo muito a sério o processo de recuperação até hoje, que nada mais é do que um processo de autoconhecimento. Hoje eu dedico parte do meu dia para exercitar o autoconhecimento.

 


Recuperação

 

Casas de cuidado vão acolher usuários

Bem Paraná — Pode detalhar alguma ação da nova Política Municipal sobre Drogas de Curitiba?
Diogo Busse — Implantaremos casas de cuidado nas áreas de maios vulnerabilidade, nas cracolândias. Nesses lugares o usuário vai poder exercer a dignidade, tomar um banho, escovar os dentes, tomar café, ter apoio psicosocial. É muito mais provável que ele se recupere a partir do momento que ele integre a rede de serviços mais básica da prefeitura do que se ele tiver isolado em uma cracolândia livre de qualquer vínculo com o estado, com a família, com o poder público. Essa é uma política de redução de danos que sozinha, por si só, pode não contribuir, mas dentro dessa política mais ampla, nós entendemos que terá bastante resultado.

BP — Como um crítico do sistema político você se assustou com a burocracia do trabalho no poder público?
Busse — Sim, existem dificuldades, mas são problemas com os quais a gente tem que lidar. Sem dúvida existe muita burocracia. Em um primeiro momento fiquei um tanto assustado com a burocracia, entendendo o funcionalismo público, mas não vejo isso como um impedimento para fazer um belo trabalho. Pelo contrário, tenho boas expectativas porque os principais gestores são pessoas extremamente preparadas e capacitadas.

BP — Qual a sua mensagem para quem está passando por algo parecido com o que você já viveu?
Busse — A primeira coisa que diria para as famílias é que jamais desista dos seus familiares mais queridos que estão em processo de recuperação. Eu trabalho há anos como voluntário e já vi de tudo. A recuperação é possível e não existe caso perdido. Eu diria para os pais não se desesperarem. A cultura do medo e do terror não leva a lugar algum. E acima de tudo, é preciso preservar um ambiente de diálogo em casa.