Slavery didn’t end in 1865. It just evolved (A escravidão não terminou em 1865. Apenas evoluiu). Essa frase citada pelo professor Bryan Stevenson, da Universidade de Nova Iorque (NYU), poderia se aplicar à realidade brasileira e ao então já bastante tardio ano de 1888, já que a mera consulta de quaisquer dados e estatísticas produtores de conhecimentos disponíveis evidencia que a população negra ocupa um lugar na equação das vantagens e desvantagens sociais.

A maioria da população carcerária, por exemplo, é negra: 60,8%, conforme números de 2012 do InfoPen (banco de dados contém informações de todas as unidades prisionais brasileiras). Expressivo também é o número de jovens negros que são assassinados: a probabilidade de um jovem negro morrer deste modo no Brasil é 147% maior do que a de um jovem branco (IBGE-Diest/Ipea 2014). Abissal é a diferença de remuneração entre negros e brancos: segundo dados de 2014 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, a média de rendimentos é 40% inferior em relação aos brancos. Ínfima é a representatividade de negros em posições de decisão da Administração Pública (8,65% dos candidatos nas eleições de 2016 se declararam negros, segundo o Tribunal Superior Eleitoral), dos órgãos do Poder Judiciário (apenas 1,4% dos juízes se declara preto e 14% pardos, conforme Censo 2014 do Conselho Nacional de Justiça) e nas empresas (apenas 4,7% dos cargos executivos são ocupados por negros, conforme dados de 2016 do Instituto Ethos).

Atualmente, há uma vasta gama de normas brasileiras que garantem a eficaz implementação de políticas afirmativas (além das diversas leis federais, estaduais e municipais que dispõem sobre cotas étnico-raciais no ensino e serviço público, o Estatuto da Igualdade Racial/Lei 12.288/2010 as prevê em diversos de seus dispositivos). Ademais, sua constitucionalidade já se afirmou por julgamentos do Supremo Tribunal Federal na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.186-2 e na Ação de Constitucionalidade n. 41. Portanto, não há discussão, tal como muitas vezes aponta o senso comum. O sistema normativo brasileiro é a favor das cotas raciais.

Nesse contexto, avulta o papel do Ministério Público na medida em que é órgão de extração constitucional que defende a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses sociais e os direitos individuais indisponíveis (art.127 da Constituição da República). Ressurte de tal dever imposto, relembrado pela Recomendação n. 41 do Conselho Nacional do Ministério Público, a necessidade de defender a ordem jurídica, verificando a lisura das políticas afirmativas de cotas existentes, combatendo fraudes e fomentando e promovendo a aplicação de tais políticas, onde há omissão. O verdadeiro descumprimento de tais leis impede a plena superação das desigualdades étnico-raciais no âmbito do ensino, trabalho e emprego. E contra ilegalidades deve atuar o Ministério Público brasileiro.

Mariana Seifert Bazzo é promotora de Justiça do MPPR, coordenadora do Núcleo de Promoção da Igualdade Étnico-racial do MPPR
Andre Luiz Querino Coelho é promotor de Justiça, membro do Núcleo da Promoção da Igualdade Étnico-Racial do MPPR