
Tudo começou com um convite para o ilustrador curitibano José Aguiar. A ideia da Biblioteca Pública do Paraná (BPP) era escrever sobre o Humor Gráfico em Curitiba. Mas o projeto cresceu. E tornou-se um resgate histórico da cena local no que refere a charges, cartuns e quadrinhos. Trata-se do livro ‘Narrativas Gráficas Curitibanas: 210 Anos de Charges, Cartuns e Quadrinhos’, de autoria de José Aguiar.
Oficialmente, o lançamento será nesta sexta-feira (4), às 19 horas, através de uma live com Aguiar e os pesquisadores Maria Clara Carneiro (Universidade Federal de Santa Maria) e Rodrigo Scama (Uninter), com transmissão pelo canal youtube.com/BibliotecaPR. Mas o livro já está disponível para download desde a última sexta-feira (28). Faça o download AQUI. Há, também, uma versão impressa, com 360 páginas.
Aguiar levou pelo menos quatro anos entre pesquisas e entrevistas com autores até efetivamente lançar a obra. Ele conseguiu resgatar o que provavelmente é o mais antigo desenho satírico em Curitiba: “Regimento do Anno 1807, Cavalaria de Coritiba”, encontrado por Newton Carneiro. Esta charge, publicada em 1807, serve de “marco zero” na cronologia da história das narrativas gráficas locais, que no livro estão retratadas até o ano de 2018. Houve contratempos, sendo um deles a pandemia da Covid-19, que impediu a realização de um evento de lançamento. Mesmo assim, o autor conversou com o ‘Bem Paraná’.
Bem Paraná – De onde vieram as ideias para o livro?
José Aguiar – O livro surgiu de um convite da BPP para escrever sobre o Humor Gráfico em Curitiba. Como eu tinha experiência na curadoria de exposições e eventos como Gibicon e Cena HQ, acreditavam que eu poderia ser a pessoa certa para a iniciativa. Eu argumentei que a cena local é mais rica, com muitos artistas transitando entre diversos gêneros. Gostaram da minha sugestão de expandir o escopo do projeto e me deram liberdade total para escrever um livro que pode servir como um mapa do tesouro da cena local no que tange charges, cartuns e quadrinhos.
Bem Paraná – Qual foi a parte mais difícil da pesquisa?
José Aguiar – Encontrar material de antes da década de 1970. Existem muitos fragmentos perdidos entre a própria BPP, a Gibiteca, a Casa da memória, o MAC (Museu de Arte Contemporânea) e acervos particulares. Mas pouca coisa realmente organizada. Foi um esforço de reunir pistas onde contei com o apoio desses espaços culturais e de estudiosos e colecionadores que me abriram seus acervos. É frustrante saber que alguns artistas escaparam do meu radar. Mas o livro é um convite para que outros sigam as indicações e encontrem as informações que podem fechar as lacunas da memória que o tempo deixou.
Bem Paraná – Qual a parte da pesquisa que mais te surpreendeu?
José Aguiar – Os depoimentos dos artistas perseguidos pelo regime militar. E o pouco caso que alguns autores mais antigos fazem da própria contribuição para a cena artística local. Espero que o livro resgate neles o orgulho próprio.
Bem Paraná – Ao ver algumas charges políticas antigas, o leitor pode pensar que elas são atuais. Por que você acha que isso acontece?
José Aguiar – É comum que alguns temas se repitam na sociedade. Ainda mais se não temos memória e permitimos que erros passados se perpetuem. Os dramas humanos são sempre os mesmos. Infelizmente, muitos dos nossos erros também. Inclusive, charge, cartuns e quadrinhos sempre estiveram pondo o dedo nessas feridas. É papel da arte expô-las e nos fazer refletir a respeito. Em vez de passar por cima e ignorar.
Bem Paraná – Como você vê o futuro da charge e do desenho no Paraná, de forma geral?
José Aguiar – Estamos num momento triste no Paraná, pois quase não temos mais jornais impressos para veicular charges. Elas, junto das tiras de quadrinhos, sempre foram um diferencial, uma identidade dos veículos jornalísticos. Um fidelizador de leitores! Um jornal sem elas é um jornal sem alma. No meu livro, fica claro que os períodos de auge dos jornais foram os períodos em que mais tinham artistas colaborando com as redações. Mas nos últimos anos a charge voltou como nunca a ser combativa diante de absurdos cotidianos. Ela se recusa a morrer. Só falta incentivo financeiro aos artistas, que se veem obrigados a competir com memes aleatórios e de qualidade duvidosa nos grupos de Whatsapp. O futuro é incerto. Os quadrinhos ganharam certa força como independentes, mas cartuns e charge precisam da imprensa para atingir seu potencial. E fomentar novas gerações de artistas engajados com a reflexão social. Mas isso depende de veículos sérios que não vejam essas linguagens como meros enfeites.
Bem Paraná – Você trabalhou por um bom tempo na Europa. Você acha que essa parte de preservação de história cultural é pouco valorizada no Brasil, em relação à Europa?
José Aguiar – Sempre tivemos esse problema aqui. E a preservação da memória no Brasil recente vem sendo atacada como nunca. Não só ela, mas a discussão da História e seu entendimento. Sem saber de onde viemos, não temos como projetar um futuro melhor. Na Europa há, sim, uma preocupação muito grande com a manutenção da memória, em especial artística. Mas nem lá tudo é perfeito. A História sempre pode ser reescrita de maneira tendenciosa se não ficarmos atentos.
‘Bem Paraná’ faz parte da história
Fundado em 1983 como ‘Jornal do Estado’, o Bem Paraná publicou trabalhos de grandes nomes do desenho paranaense desde então. Tanto charges de cunho político quanto tiras em quadrinhos, além de ilustrações especiais.
O próprio Aguiar publicou tiras no Bem Paraná no começo dos anos 90 e de 2002 a 2005. Entre os personagens que saíam no jornal estavam o Boi e a adolescente Malu. Suas primeiras publicações são de 1991. “São 30 anos de carreira profissional graças ao velho ‘Jornal do Estado’”, disse ele.
Luiz Antonio Solda publicou charges na primeira edição do então ‘Jornal do Estado’, de 17 de junho de 1983, e nas edições seguintes. Com isso, foi o primeiro chargista do jornal.
Dois nomes de grande relevância foram Noviski e Tiago Recchia. O primeiro publicou trabalhos no começo dos anos 90. Já Recchia, conhecido pelos personagens da série Los Três Inimigos, fez charges diárias de política também nos anos 90.
Um dos que contribuiu por mais tempo foi Theo Szczepanski, de 1998 a 2006. Também era um dos mais versáteis: produzia tanto charges quanto ilustrações que se complementavam com as matérias do jornal, além de páginas de passatempos.
Dois artistas que hoje brilham no meio publicitário nos Estados Unidos também publicaram tiras no ‘Bem Paraná’: os gêmeos Renato e Roberto Fernandez. Outros artistas citados no livro que tiveram passagem pelo ‘Bem Paraná’ foram a quadrinista Telma Nardes, o ilustrador Adriano Moraes, que assinava com o pseudônimo Wilbur, o desenhista Foca Cruz e o quadrinista Irineu Sant’Ana.
A primeira charge curitibana, de 1807
Charge de Solda na 1ª edicão do ‘Bem Paraná’
Charge de Noviski em 1991 no ‘Bem Paraná’