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Mauricio Decker (Foto: Arquivo Pessoal)

Mauricio Decker, 48 anos, é um amante da liberdade. O pedal entrou na sua vida de uma forma muito despretensiosa e ficou. Assim, como o prazer da leitura veio com a variedade dos livros que os pais mantinham na biblioteca de casa. Na esteira do que virou rotina, o prazer pelas viagens iniciaram com o tio, irmão do pai, quando colocou o pé na estrada aos 5 anos para descobrir o mundo. Foi um pulo para gostar de subir montanhas e viver a natureza. O tripé de motivações que sempre deu certo e que o levou, em 2022, a pedalar, por quase 30 dias, 1,8 mil km para conhecer histórias. De profissão, é editor de livros.
A soma vai virar uma publicação, sem uma data definida ainda. Maurício quer que seja o quanto antes, mas a produção tem sido nos intervalos entre os dois empregos, durante a madrugada, aos fins de semana. “Seria excelente aproveitar o sucesso do filme Sociedade da Neve”, admite.

A obra cinematográfica, que concorre ao Oscar como melhor filme estrangeiro, relembra a história dos 16 sobreviventes uruguaios do voo 571, que sofreram um acidente na Cordilheira dos Andes, em 13 de outubro de 1972. Coincidentemente, 72 dias à espera de um milagre, em meio a temperaturas de -30 graus celsius, usando os destroços do avião como abrigo e o calor humano para se manterem vivos.
Aos 16 anos, o editor conheceu a história dos jogadores de rugby pelo livro “Os Sobreviventes – Uma Tragédia nos Andes”, do romancista inglês, Piers Paul Reed. Ele escreveu a obra um ano depois da tragédia, em 1973. “Os relatos sempre me cativaram muito, e desde cedo tive vontade de viajar pelo mundo, em ser montanhista, em ser tudo. Aos 16 anos, não era nada. Só um leitor que sonhava em fazer muito.” E 30 anos depois da leitura, Maurício entendeu que era hora de colocar o pé na estrada para ver de perto o que era apenas um livro e filmes.. Durante a viagem, ele teve a oportunidade de estar com um dos sobreviventes, Roberto Canessa.


A viagem

E em fevereiro de 2022, resolveu que era o momento. A distância de Curitiba a Montevidéu foi vencida de ônibus. Da saída da casa do professor e médico cardiologista, Maurício seguiu de bike até o El Sosneado, a última vila antes de entrar na Cordilheira dos Andes. “São 60 km até cruzar o vale do Rio Atuel, na região de Mendoza, na Argentina. Desse ponto, mais 30 a pé até encontrar os destroços do avião. Em altitude, cheguei a 4 mil pés. E mais o caminho de volta. Uma distância razoável e bem longa.” O percurso iniciou em 21 de fevereiro e durou até o dia 30 de março.

No encontro com Canessa, recebeu o conselho: “continue metendo pedal, que cada dia te quero mais!” E que honra. Ele é um dos seus ídolos, entre os que mantém da literatura. ” O Roberto Canessa e o Nando Parrado foram os que cruzaram a montanha em uma jornada épica da humanidade”. Com Parrado, trocou mensagem por celular. Chegaram até cogitar reunir os que venceram a tragédia, mas por ser período de férias, mudaram os planos. A experiência de ser recebido na casa de Canessa, sentir o acolhimento da família dele e conhecer objetos guardados da tragédia – os que vieram na pequena mala inseparável no dia do resgate – foi transcendental. Mauricio chegou a participar do aniversário da neta do ex-jogador.

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Arquivo Pessoal

Quando saiu da casa daquele que se considera amigo, sabia que seria uma viagem solitária. Os ventos fortes fizeram parte do pacote dos empecilhos, assim como a altitude. Contudo, ele lembra que era o esperado no planejamento de viagem. Tinha se preparado bem, ao longo de tantos anos. Na mochila, o peso racional com utensílios que garantiram a sobrevivência. Na mente, o cuidado em monitorar os prazos para não pegar nevascas. Foi uma constante expectativa se tudo ia dar tudo certo, o pensamento que voa pensando na familia e nos amigos. “Em todo o trajeto, fui relembrando a história dos sobreviventes, e que complexo porque tem muita coisa vivida naquele espaço.” Quando chegou no local dos destroços, nem acreditou. “Tocar os objetos e os revestimentos dos assentos avião, olhar as mesmas montanhas que os sobreviventes observaram durante 72 dias à espera de um resgate é fora da compreensão”. Vai além do que palavras possam explicar. É mágico.

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Arquivo Pessoal

A experiência ganhou a montanha

Com os anos, Mauricio Decker foi ganhando o conhecimento necessário para a aventura. Fez viagens de mochila, percorreu milhares de quilômetros de bike, subiu montanhas, levou alguns tombos, ganhou uma hérnia de disco e escreveu o livro ” O Mentiroso de Chubut”, onde conta a viagem que fez para a maior colônia de pinguins fora da Antártida, em Punta Tombo, na província de Chubut, na Argentina. Com a pandemia, quase chegando aos 50 anos, sentiu que era hora de se preparar para o grande sonho. Em 2022, o chamado “Milagre dos Andes” completava 50 anos. Para o editor de livros, seria seu milagre em contemplar um sonho de adolescência, vencer o desafio das montanhas e homenagear as vítimas.

“Quando era pequeno usava a bicicleta do meu avô, daquelas de modelo barra forte, para explorar a cidade do interior de Santa Catarina. Eu andava muito e nem sabia. Virei adulto e coloquei na cabeça que queria uma profissão que me levasse a viver.”

Mauricio fez de tudo um pouco. Divertido, ele lembra que como não existe curso universitário de montanhismo, nem de viajante, a pressão da sociedade e da família, o levaram para o curso de Direito, inicialmente. “Minha família toda é do Direito. Minha mãe, meus irmãos, meus tios, o papagaio e o cachorro”, brinca. Descobriu que não era seu prazer virar advogado. Foi para o curso técnico de turismo, mas também entendeu que o trabalho é para os outros viajarem. “Eu queria explorar montanha, queria viajar de verdade, ser um viajante nato, não um guia de traduções.” Aos 19 anos, fez mais uma escolha e prestou vestibular para o curso de Geografia, na UFPR. Mas, profissões regulares não se fechavam no seu desejo de aventurar. Largou o curso no quarto ano e foi ser mergulhador. Sofreu um acidente sério que o levou a largar a prática e decidiu que se queria viver o mundo, o caminho era virar imigrante. Foi para Portugal, a porta de entrada à Europa. Depois de lavar muitos pratos, admitiu o romantismo de ideias. “O mundo vai jogando na sua cara que não é bem assim”. E voltou. Assumiu o curso de Letras e sossegou, em partes.”Precisava de uma vida regular, não que estivesse pensando em carreira, em dinheiro mas em algo que me trouxesse conhecimento.” E desse tempo, construiu um capítulo que foi ganhar os amigos sobreviventes e contemplar seu sonho.