Aprovar novas Constituições é o esporte favorito dos políticos latino-americanos. Mais de duzentas já foram feitas no período republicano sem que seus resultados fossem notados. Na Bolívia, a primeira é de 1826, logo após a libertação nacional por Simon Bolívar. Não parecia má, pois garantia a todos a igualdade perante a lei, a liberdade de comunicar seus pensamentos e a inviolabilidade domiciliar, abolindo todos os privilégios hereditários. Não obstante, cinco anos depois foi substituída e os legisladores não mais se contiveram: excetuando as alterações parciais, foram cerca de vinte até hoje, numa média de nove anos para cada uma. Mesmo a mais duradoura, de 1880 (conhecida como a Constituição da Ditadura), que perdurou até 1938 e atravessou dezesseis mandatos presidenciais, sofreu nove profundas reformas. Desta feita, Evo Morales, seu vice e mentor intelectual García Linera e o MAS (Movimiento Al Socialismo) desejam “refundar a nação”, começando por assegurar a si próprios a possibilidade de permanência por treze anos no governo, até 2019. Trata-se de uma Lei Magna prolixa com seus 411 artigos nem sempre claros, como o que estabelece como idiomas oficiais o castelhano e “todos os demais dos povos indígenas (cerca de 36)”; o que institui diversas autonomias, uma delas a dos Departamentos (estados) ou o que dá à coca o título simbólico de “patrimônio nacional”.
A questão da propriedade da terra promete gerar intensas disputas legais e estímulos a invasões no estilo MST. O artigo 398 proíbe o latifúndio, definindo-o como a posse improdutiva da terra e incluindo a que não cumpra a Função Econômica e Social (FES), sempre com limite máximo de 5 mil hectares. A regra vale de ora em diante, mas as propriedades existentes já estão submetidas à Lei 3545 da Recondução Comunitária pela qual as terras que não se enquadram como FES são desapropriadas e passam a pertencer ao governo, sem qualquer indenização.
A nova Constituição foi aprovada por 58,7% dos bolivianos em pleito de abstenção mínima (9% dos 3,9 milhões de eleitores), graças ao forte apoio das comunidades indígenas de La Paz e da população rural. O problema é que dos nove Departamentos em que se divide o território boliviano, apenas em quatro ganhou o “sim”: La Paz, Cochabamba, Oruro e Potosí. Nos outros cinco – Santa Cruz, Chuquisaca, Tarija, Pando e Beni – ela foi rejeitada em média por 61% dos votantes. Uma vez que neste grupo a nova Constituição não é aceita, permanece a dura divisão da sociedade boliviana que o governo Evo parece fazer questão de aprofundar. No pleito de domingo o caso mais crítico foi o de Pando, onde uma matança com treze vítimas na localidade de Porvenir no último 11 de setembro provocou um Estado de Sítio, a prisão do prefeito (equivale ao posto de governador) Leopoldo Fernández, a nomeação de um militar para o seu lugar e a fuga das autoridades locais para Brasiléia, no Acre. Sob controle militar permanente, a campanha pelo “não” foi quase nula por medo da perseguição e mesmo com dois eleitores de cada dez ficando em casa, 61% dos que compareceram votaram contra a proposta do governo. Em Chuquisaca, a prefeita indígena Savina Cuellar deu a palavra de ordem de “desacato” à nova Constituição, uma posição que pode, perigosamente, conquistar adeptos nos próximos dias e meses. Nas ruas de Sucre, a capital do Departamento, o povo em praça pública gritava: “Savina de pé. Evo de joelhos”.
Em comparação com os resultados do referendo revogatório do mandato presidencial de agosto do ano passado, o apoio a Evo diminuiu um pouco, mas no essencial a situação não mudou, consolidando-se a fratura do estado boliviano entre os Collas do Altiplano e os Cambas das planícies. É indiscutível que o MAS se fortalece com a aprovação majoritária da sua Carta Magna, mas para implementá-la será preciso recuperar a confiança da Bolívia não-índia, evitando que o país afunde numa luta fratricida que a muito custo tem sido contida.
* Escritor, analista internacional
Autor do livro Guerra en los Andes (2ª edição Ed. Abya-Yala, Quito – 2008)