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Novo tênis da nike custa 170% do salário mínimo e causou furor nas redes sociais, gerando até mesmo uma onda de ataques à marca

O preço de prateleira do novo Alphafly, tênis usado por Eliud Kipchoge para quebrar a barreira das 2 horas em maratonas, chegou ao mercado brasileiro por R$ 1.799. Este valor corresponde a cerca de 170% do salário mínimo do Brasil – de R$ 1.045. O valor do calçado causou revolta em muitos corredores, mas há uma explicação por trás deste número: o desenvolvimento de um mercado de luxo na corrida.

Destaca-se que a maioria das marcas tem calçados na faixa de R$ 1 mil para modelos mais recentes e tecnológicos. Se formos usar a lógica do salário mínimo, o preço de R$ 999 cotado para o Mizuno Enerzy, que foi lançado recentemente, também deveria incomodar. Os preços assustam por estarem associados a um esporte que, em essência, demanda muito pouco, além da vontade de treinar e de se movimentar.

Investir em tênis, relógio com GPS, roupas esportivas, fone de ouvido bluetooth, suplementos alimentares e outros acessórios pode ser uma maneira de tornar essa rotina mais confortável e agradável, mas não são materiais determinantes para os resultados. Pelo contrário, inclusive. Há muitos corredores amadores com desempenhos excelentes com pouco ou nada dos materiais mais modernos.

Apesar de o esporte ser simples, isso não quer dizer que não exista um mercado de luxo. Assim como em outros setores, há sempre produtos mais caros para quem está disposto a pagar – pela exclusividade, pelo status e pela valorização. Por isso, é claro, a Nike não vai lançar o mesmo volume de Alphafly e de Zoom Fly 3 em sua loja – exclusividade e indisponibilidade torna o modelo usado por Kipchoge mais cobiçado.

Será que o Brasil tem um público de luxo? E como! Entre 2013 e 2018, o faturamento desses produtos teve alta de 18% no Brasil, de acordo com a consultoria Euromonitor. Vale lembrar que, nestes seis anos, o Brasil enfrentou grave crise econômica – O PIB caiu 1,3% neste período. E as projeções para o setor são de crescimento: a estimativa é de aumento do faturamento em 4% ao ano, com alta de 20% até 2023.

Valores intangíveis

O mercado de luxo vai além da qualidade do tênis: ele traz valores intangíveis. Para sairmos do exemplo da corrida, imagine o universo das motos. Existe o motociclista que usa a moto para o trabalho, aquele que compra para rodar no fim de semana (geralmente procura as motos esportivas ou customizadas) e o que gosta de viajar, que investe em motos mais confortáveis e robustas.

A pergunta é: a Harley-Davidson vende só a moto? Longe disso. Quem adquire esta moto compra um valor intangível: o sonho de liberdade construído pela marca ao longo de muitos e muitos anos. Quer dizer que o “harleiro” vai fazer uma expedição e conhecer toda a América do Sul sobre duas rodas? Não necessariamente. Ele pode seguir só entre Curitiba e Matinhos, mas ele adquiriu este sonho.

A lógica é parecida com o mundo da corrida: será que todos os corredores que vão adquirir o Alphafly correm a um pace que justifica este investimento? Tenho minhas dúvidas e, para a Nike, essa questão é irrelevante. Ela conseguiu despertar o desejo e, mais do que isso, atribuiu ao calçado o valor intangível da velocidade. A pessoa que o adquirir pode não ser um corredor rápido, mas vai se sentir como tal.

Essa construção não é simples e veio ao longo dos anos, com patrocínios no esporte de alto rendimento, o desenvolvimento de um evento para tentar quebrar a barreira das 2 horas, a criação de diversos tênis para o dia da prova (incluindo a última linha com a placa de carbono, que trouxe um novo movimento de tênis muito próximo do salário mínimo).

Em outras palavras, o Brasil – e a corrida de rua – tem público para consumir esses produtos. Você precisa dele? Esta questão é de foro íntimo. Eu não gasto mais de R$ 400 nos meus tênis e tenho convicção de que eles cumprem com o seu objetivo. Apesar de eu não ter desejo ou interesse em ter esse tênis, isso não significa que a marca deve ser atacada por desenvolver um produto voltado a um público que não só existe no país como está em pleno desenvolvimento.