Franklin Freitas

Os 14 mil títulos de filmes em mídia física da Cartoon Vídeo, Loja Cabral, em Curitiba, serão colocados à venda a partir do dia 1º de março. A locadora, que tem 33 anos de existência, vai fechar definitivamente as portas para locação no dia 26 de fevereiro. O ritual de locação, que inclui consulta aos “vídeo-indicadores”, especialistas que faziam amizade e traçavam o perfil de cada cliente, deixará saudades aos amantes de cinema, nostálgicos da locação de filmes em cassete, DVD, blue-ray e 3D . Segunda locadora mais antiga de Curitiba, a Cartoon aguentou o que pôde na competição com as novas plataformas de streaming de vídeo, como Netflix, ou serviços como Now, Claro Vídeo e outros, além da pirataria, considerada vilã responsável por parte da debandada da clientela.

Ao longo dos anos, a Cartoon registou um total de 155 mil clientes cadastrados, atendidos por 490 funcionários que passaram pelas três lojas, desde que a marca abriu as portas em 1986 na capital paranaense. A loja do bairro Cristo Rei fechou em 2013, e a do Ecoville, em 2015. A matriz, do Cabral, é a última a fechar. A decisão está tomada há um ano, segundo o empresário Neivo Zanini. Ele diz ter tomado o cuidado de frear a estratégia de expansão da empresa e passou a demitir funcionários aos poucos. Emocionado, Zanini se diz grato à equipe e aos clientes. “Muito difícil. O mercado já indicava a necessidade de fechar lá atrás. Eu fui postergando, um pouco na esperança de poder continuar. Eu sou muito grato, e gostaria de agradecer de coração aos colaboradores e clientes”, destaca.

Acervo

Zanini conta com orgulho como foi a trajetória e a forma como administrou o negócio. “Temos um acervo de 14 mil títulos agora, um dos mais completos do Brasil, principalmente porque a gente se dedicou aos filmes clássicos, europeus, asiáticos, latinos, iranianos, além de um acervo completo de filmes antigos. Claro, também os filmes comerciais”, diz.

Além da Cartoon, a Vídeo 1, também tradicional, fechou do ano passado. As duas locadoras, segundo Neivo, se mantiveram abertas por mais tempo por investirem em acervo robusto. Apesar disso, o empresário ressalta que a pirataria na Era Digital também contribuiu para e derrocada do meio tradicional. “Fomos vencidos pela revolução digital e também pela pirataria, que está circulando abertamente o Brasil todo. A primeira (mais antiga) foi a Vídeo 1, que fechou faz uns 10 meses. Nós entramos em 1986 e foi um crescente permanente, até 2012, quando o mercado começou a sinalizar estabilização. Começou a queda nos últimos 6 anos, na medida em que a internet e a pirataria avançaram”, avalia.

A marca, Cartoon Vídeos, deve ser encerrada junto com a loja física, já que o empresário não vê como entrar no mercado digital. “Não tem como. Isso só é viável para grandes grupos. Nessa área estou me despedindo. Com muita tristeza, fizemos muitas amizades, relação com funcionários. Muitos clientes estão lamentando, porque gostavam de pegar o filme e trocar ideias com os funcionários. Foram 33 anos de muito sucesso. Posso afirmar com grande orgulho que foi uma das maiores locadoras do Brasil”, lamenta.

Os 14 mil títulos serão vendidos a partir do dia 1º de março, por valores que variam de R$ 5,50 a atá R$ 40,00. “A maioria vai sair por 10 reais. Só os muito raros que devem chegar aos 40 reais, mas são poucos”, diz o empresário. No acervo, segundo Zanini, 70% são DVDs. O restante se divide entre blue-ray e uma minoria em 3D. “Vamos manter a locadora aberta para venda enquanto durar o estoque”. A loja ficará aberta do meio-dia às 21 horas, de domingo a domingo. Depois disso, o imóvel da Cartoon, que pertence a Neivo Zanini, será alugado.

Cultura de relação entre clientes e funcionários “morre junto com a locadora”

Ainda na era das locadoras, que teve seu ápice nos anos 90 e começo dos anos 2000, passando pela transição de fitas cassete para DVDs, depois Blue Ray e 3D, a Cartoon se destacou por investir em informação. “Era feita uma rigorosa seleção na entrevista (para contratação de funcionários) e selecionávamos aqueles que tinham não só conhecimento profundo de cinema, mas também bom relacionamento com o cliente. Graças a Deus, de uma forma geral, sempre tivemos alta capacitação. Isso, obviamente, tinha um retorno. O cliente voltava e gostava disso. E também na seleção do acervo. Tínhamos funcionários que assistiam aos filmes para selecionar os mais adequados para o acervo, a quantidade e volume. Nós comprávamos títulos comerciais com muitas cópias, com prateleiras que tinham de 50, 80 a até 100 cópias para poder atender à clientela”, conta o empresário Neivo Zanini.

O fim das locadoras encerra também a relação de intimidade entre clientes e funcionários. Recontratado neste ano para organizar a venda do acervo, Vinicius Costa Pinto, de 24 anos, lamenta também o fim da cultura. “Morre junto com a locadora. Não existe outra maneira de criar esse vínculo com o cliente. Pessoalmente é um baque. É um polo cultural. A questão de que as pessoas se apropriavam, no entorno, tinham um lugar no qual podiam vir. Durante anos desenvolvemos um método de atendimento personalizado, de proximidade com o cliente. Apesar de termos um porte grande, o atendimento é de bairro. Tem cliente que nem vinha para alugar, mas só para conversar sobre filmes”, conta.

Vinicius lembra que havia especialistas, alguns “famosos” entre os clientes, por saberem exatamente o que indicar para cada um. “Todos (os funcionários) têm que curtir cinema, mas nesse caso específico, existia o vídeo indicador, como o Ilvor, acho que é o funcionário mais icônico da locadora, também o Valdemar, Edison e todo mundo indicava filme. E cada um deles dividia o público. Quem gostava de arte pedia indicação para um, filme clássico para outro. Você descobria o gosto do cliente e como ele voltava para a loja você já sabia do que ele gostava. Se o cliente não gostasse do filme você não ia detonar o filme, nunca falar mal, mas adequar o discurso. Cada funcionário se preparou para atender com intimidade. Cada funcionário tem cinco ou dez clientes que sempre conversavam e viraram amigos até”, retrata.

O funcionário conta que desde 2013 já se sabia que a loja acabaria por fechar. “Mesmo quando ainda tinha movimento, os clientes já perguntavam. Depois foi indo com corte de custos, corte de custos. Realmente se tornou insustentável. De 2016 para 2017 foi o baque”, lamenta. Os funcionários, muitos viraram amigos, farão uma confraternização após o fechamento, incluindo os clientes mais íntimos.

Ainda nos últimos dias antes do fim, a arquiteta Thais Zwiener estava na loja nesta semana. “Sou cliente há muito anos, nem sei quantos. A gente entende a situação, porque as plataformas de vídeo, como Netflix, e agora até a Disney tem uma, então isso a gente já esperava”, diz. No entanto, Thais concorda que a perda irreparável será a do relacionamento com os funcionários. “Isso a gente vai sentir muita falta. É um carinho que às vezes a gente nem queria assistir nada, mas vinha porque eles iam saber indicar alguma coisa. O pessoal é muito atencioso, pegavam seu estilho”, diz, grata, a cliente.