Lina Sumizono

As diferentes vozes a respeito de um mesmo espetáculo é uma das possibilidades que a crítica artística abre. E aqui temos a visão da Ana, colaboradora do blog na cobertura do 30º Festival de Teatro de Curitiba.

Quem é a autora?

Ana Reimann é atriz, formada pela Faculdade de Artes do Paraná e jornalista pela Universidade Positivo. Como artista e comunicadora, investiga a linguagem contemporânea de criação e a convergência entre arte, comunicação e cultura. É assessora de comunicação da Smartcom – Inteligência em Comunicação e parceira do Grupo Obragem de Teatro.

Cercada de ruínas, em uma festa no fim do mundo, uma mulher dança nos destroços de um naufrágio. Vestida com penachos, ela rodopia entre tiros, bombas e a solidão causados pela pandemia e pelos conflitos que abalam o mundo na contemporaneidade.

Em G.A.L.A, cada prato quebrado é um grito de socorro.

A dramaturgia de Gerald Thomas, marcada pela influência dos dramaturgos Samuel Beckett e Heiner Müller, se atualiza enquanto a peça acontece VIVA, em cena. Thomas demonstra um desejo genuíno de romper com os autores que o acompanharam durante a sua trajetória, talvez uma tentativa de atualizar sua própria história a partir dos novos tempos de guerra. Guernica, de Picasso, realmente, parece (?) um pouco distante.

Quando Fabiana Gugli, com a sua presença digna de prêmio, se é que isso é mesmo relevante, levanta o crânio, que simbolicamente representa as milhares de vidas destruídas pelas guerras, pelo descaso com a saúde pública, pelo governo genocida, as crianças órfãs ou mortas nos conflitos, o espelho do que somos no caos do dia a dia das nossas vidas solitárias, silenciosas, ora psicóticas, presas no DNA que carrega a ancestralidade, vemos também que Ofélia, aquela que o rio não conservou, ainda vive. Heiner Müller não morreu para ele. Em tempos de NFT e bitcoins, o adeus a Godot não será tão fácil.

Triste é perceber que as piadas casuais, que ocupam o lugar comum, sobre o coentro no feijão, as menções às dancinhas do tik tok e as propositadamente rasas chacotas de apelo sexual, são as únicas que tiram risinhos da plateia. Não temos mais referências.

A artista russa Gala Dalí, casada com Salvador Dalí no século XX, e seu amante Sancho, protagonizam o texto de G.A.L.A. Eles têm conversas intermináveis sobre questões existenciais. As reflexões representam o alter ego de Gerald e, também, a “existencialidade” de Gugli que, vivencia cada gesto de forma única e desnuda-se em cena, ao também se mostrar à procura por respostas que o universo não é capaz de responder. É possível enxergar suas veias, o amontoado de células, os ossos que a sustentam em um cenário global que perde para as fogueiras da inquisição, para a fila do pão, a crise de 1929, o terceiro Reich. Só restam a lua vermelha de sangue projetada na parede vazia, a bebida e o rock and roll.

De repente parece que, mais de uma vez, a encenação chegará ao fim. Aqueles finais que terminam no auge, em imagens dignas do hiper-realismo de Hopper: a solidão de um corpo e da luz que invade, de forma precisa, a arquitetura, como um dejavu.  Um guarda-chuva que se abre no dilúvio, em busca de proteção. Um braço estendido implorando por ajuda. Uma epifania.

A figura de uma ave quebrada, como se fosse posta em sacrifício para salvar o mundo, é um exílio do ser humano em si. O ritual de tirar as penas da cabeça, uma por uma, como quem larga o seu ejá e deixa o ori exposto para guerrear sozinho é uma pista de quem, talvez, utiliza o microfone para reverberar palavras que nunca encontram o destinatário.

Às vezes é a falta de sanidade. Outras, é um fio de cabelo, um osso, um dente não encontrados.

Nesse ponto, começa o processo catártico. No ápice, o microfone desliga (será que estragou?), entra a música estridente, uma luz que ofusca e chega aquela cena fútil sobre a mulher de classe média que procura ouvir o sexo dos vizinhos.  É exatamente esse o momento que te fazer acordar: você está no teatro, essa é uma encenação, a mulher é uma atriz e o diretor é o Gerald Thomas. Os braços para cima são da Fabiana, ela chora para comover, há uma fita em formato de X nos seus seios com o objetivo de se fazer gritar a todos, como Munch, o pavor aos resquícios da nossa desoladora realidade burlesca. Em um looping, aquela imagem será quebrada, e outra se formará, e outra, até o momento em que entenderemos e nos cansaremos do choque de realidade que é enfrentar o nosso caos. Como hamsters, simplesmente apreciaremos a tristeza do fim.

Em G.A.L.A, não há espaço para riso. A não ser se for para constatar o quanto somos ridículos.

Senti falta de você e da sua guitarra no palco. Eu te encontro nas suas próximas ruínas. Até a próxima, Gerald. Aqui ou em Itaim Bibi.

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