Cristo – a Verdade sempre buscada – apresenta concretamente uma exigência radical: Amar os inimigos. (Imagem: Pixabay)

Escrevo este texto pensando nas pessoas que partilham comigo a pertença à Igreja Católica pois, nestes tempos agitados, alguns se apresentam como os defensores da Verdadeira Doutrina, mesmo em alguns pontos que estão longe de ser consenso entre os que comungam da mesma fé. Me coloco a pensar sobre isto a partir de elementos que são constitutivos de minha própria identidade como católico, a partir da história e grandes embates do passado.

Há uma lenda que narra que Francisco de Assis e Domingos se encontraram e ambos queriam salvar o mundo. Mas como fazer isto? Domingos dizia que o mundo seria salvo pela pregação da Verdade, Francisco retrucava que o mundo seria salvo pela prática do Amor. Este embate continua no coração na Igreja e precisa ser revisitado diuturnamente.

Cristo se apresenta como a Verdade e isto tem levado cristãos a se apegar a uma ‘ortodoxia’ (a uma reta doutrina) e passam a acender fogueiras para todos os que não professam tal doutrina. Cristo como a Verdade é um ponto central de minha identidade católica, mas não posso esquecer que esta Verdade é inefável, continuamente buscada, nunca totalmente alcançada. Esta Verdade os cristãos buscam ao longo dos séculos e, com humildade, devemos reconhecer que Cristo não cabe no nosso ‘bolso’, não cabe plenamente nos esquemas mentais de nenhuma comunidade ou Igreja.

A própria história da Igreja Católica se funde com a evolução da sua doutrina: há história para cada elemento central da Igreja. A missa que hoje celebramos, por exemplo, não foi assim (com o atual rito) celebrada nas primeiras comunidades cristãs. Assim, a Igreja busca uma contínua renovação doutrinária, em consonância com alguns princípios, tais como: fidelidade à fé que herdou e abertura aos sinais dos tempos.

Para compreender a Verdade que buscamos é urgente lembrar o que nos disse Bento XVI “A verdadeira novidade do Novo Testamento não reside em novas ideias, mas na própria figura de Cristo, que dá carne e sangue aos conceitos — um incrível realismo” (DCE). Deste modo, a Verdade não reside em esquemas mentais, em fórmulas doutrinárias, mas nos abre para uma busca continua: ‘quem é Cristo?’ e, para os cristãos, esta indagação se abre e se funde com uma outra: ‘quem é Deus?’.

Retomamos assim a inspiração de Francisco de Assis: o mundo precisa ser amado. Pois o Amor é a melhor definição de Deus, e fora do Amor a doutrina é apenas esquemas mentais precários, datados, ideológicos. A Verdade nos disse para amar como Ela mesmo nos amou.

E o Cristo – a Verdade sempre buscada – apresenta concretamente uma exigência radical: Amar os inimigos. Este é o mandamento mais exigente: pois se amo o inimigo ele deixa de ser inimigo e se apresenta para mim como um ‘ser amado’. Esta é a face mais radical da busca da Verdade: amar é se aproximar da essência de Deus o que denuncia que será falso o amor quando se classifica o próximo como inimigo. Se o amor for falso, falso será o deus que se cultua.

Em tempos conturbados como os nossos – quando alguns grupos nos querem cooptar – todos nós precisamos respirar fundo para não nos colocarmos ao lado dos que acendem fogueiras para ‘queimar’ os diferentes. Exige-se assim uma vigilância constante: se meu grupo impulsiona a odiar, me afasto. Se a expressão que classifica o ‘outro’ é pejorativa, não partilho. Se minha teologia confunde Verdade com Doutrina, vou revisar. Se minha antropologia exclui algumas pessoas por serem diferentes, vou repensá-la.

Se alguma ideia justifica que é possível causar dano a alguém agora, visando um benefício eterno, retruco dizendo que a Verdade que busco ‘se fez carne’ e apregoou que o “Reino de Deus está no meio de nós”.  A Verdade que nos encanta e nos atrai não separa o presente e o eterno, o humano e o divino, nem o ser humano das outras criaturas. Ela nos impulsiona a zelar “pela vida toda e pela vida de todos”, como já nos convidava João Paulo II. Cuidar da vida em toda a sua dimensão – em uma visão ecológica – e da vida de todos, ciente que os excluídos precisam de atenção especial, se queremos, de fato, cuidar de todos.

* Mário Antônio Sanches é Pós-Doutor em Bioética pela Cátedra de Bioética da Universidad Pontificia Comillas, em Madrid. É Doutor em Teologia, pela EST/IEPG, na área de Bioética. É mestre em Antropologia Social, pela UFPR, especialista em Bioética e licenciado em Filosofia. Atua como professor titular do Programa de Pós-graduação em Teologia e no Programa de Pós-graduação em Bioética da PUCPR e também como líder do Grupo de Pesquisa Teologia e Bioética, da SBB/PR e do Comitê de Bioética do Hospital Pequeno Príncipe. Atua como Professor Visitante no Instituto Superior de Filosofia e Teologia D. Jaime G. Goulart, Dili, Timor Leste.