Dia Internacional da Mulher – 8 de março: precisamos parar de romantizar esta data política. (Imagem: Pixabay)

Embora muitas pessoas acreditem que o Dia Internacional da Mulher seja uma data comemorativa, um dia em que se rende homenagem às mulheres e, em consequência disso, recebamos algumas felicitações por sermos mulheres, é preciso dizer que esta data não se trata disso. 

O Dia Internacional da Mulher foi cunhado como uma memória produzida, representativa da luta de muitas mulheres por melhores condições de vida e de trabalho. A data representa um momento de reflexão associada à luta histórica das mulheres para terem suas condições de trabalho equiparadas às dos homens, mas atualmente simboliza também sua luta contra o machismo e a violência.

A origem da data transita por acontecimentos que na década de 1910 ocorreram entre EUA e Rússia, onde trabalhadoras reivindicavam melhores condições de trabalho. Há, nesse sentido, uma boa historiografia sobre o assunto.

De lá para cá, a luta permanece, e ganhou outros acentos. E você pode estar se perguntando o que isso tem a ver com misoginia? Nas diferentes versões sobre a origem da data, as mulheres estavam lutando pelo direito de existir em condições dignas – e isso passava, em larga medida, pelo trabalho – sem exploração, sem violência, sem aniquilação.

Imagino que muita gente saiba que “misoginia” significa literalmente ódio contra as mulheres e que, nesse quadro, não se identifique como tal. Todavia, o Brasil, é o 5º país em feminicídio no mundo, e não chegamos lá sem que boa parte da população fosse conivente com crimes contra as mulheres.

Tradicionalmente, temos ouvido que somos uma sociedade machista, fruto de uma cultura patriarcal, mas a misoginia é ainda mais grave que o machismo, pois apresenta requintes de violência mais profundos e cruéis, e a única ou principal motivação é a questão do gênero.

Realidade brasileira

No Brasil, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, uma mulher foi morta a cada 7 horas em 2019. No primeiro semestre de 2020, os feminicídios cresceram quase 2%, totalizando 648 casos. Nos meses mais críticos da pandemia do Covid-19, entre março e abril do referido ano, a alta foi ainda maior. Em São Paulo, o número de mulheres assassinadas por companheiros ou ex-companheiros subiu 41,4% no período. Penso que todos lembram do caso da juíza Viviane Vieira do Amaral, de 45 anos, assassinada pelo ex-marido com dez facadas no rosto, na frente das três filhas, na véspera do Natal de 2020. Um crime brutal e representativo da realidade de várias mulheres brasileiras.

Como se não bastasse, ainda segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, uma mulher é estuprada a cada oito minutos no Brasil (dados de 2019). E, segundo a antropóloga argentina Rita Segato, em entrevista à BBC, “O estupro não se baseia em um desejo sexual, não é a libido descontrolada de homens, não é porque sequer é um ato sexual. É um ato de poder, de dominação, é um ato político. Um ato que se apropria, controla e reduz as mulheres por meio da apreensão de sua intimidade”. Não por acaso, Rita afirma que o que motiva um estuprador não é o desejo sexual, mas o sentimento de afirmação, de poder sobre aquela que ele despreza. É um crime de ódio perante o qual tentamos encontrar alguma justificativa, culpando muitas vezes as próprias vítimas. Não há justificativa para crimes de ódio. E o estupro é apenas isso.

Violência simbólica e também física

O rebaixamento, o desprezo, o desdém vêm, muitas vezes, travestidos de piadas que muitos de nós, sem perceber a gravidade, deixamos passar sem nos posicionar. Quem não se lembra, quando da ocasião do golpe contra a presidente Dilma Roussef, em 2016, dos adesivos feitos, em tom de piada de muito mal gosto, dela nua, em uma posição sexual tradicionalmente associada à subjugação, e colados nos tanques de combustível em vários carros pelos país? Quantos de nós rimos diante dessa cena, ao invés de ficarmos envergonhados e mesmos indignados pela violência que ela representa?

Não estou aqui para julgar sua atuação como presidenta, inclusive porque este não é o propósito deste artigo, mas é importante destacar neste contexto que muitos homens, antes e depois dela naquele mesmo cargo, fizeram coisas muito piores e não foram violados, ainda que simbolicamente, por qualquer um que manuseasse um cano de combustível.

Poderíamos nos perguntar o porquê e a resposta para a nossa pergunta está na cultura misógina que nos constitui a homens e mulheres desse país. Homens que, de muitos modos, reproduzem essa violência em suas relações, tanto no plano físico quanto simbólico, e mulheres que reproduzem essa lógica na formação de seus filhos e netos, afirmando-se como baluartes da moral e dos bons costumes, e se colocando muitas vezes contra outras mulheres que, vítimas de violência, são questionadas sobre o que fizeram para merecer tal desfecho, como se a violência fosse um ato de merecimento e não um ato de opressão.

Nessa lógica moralizadora, recentemente, vimos alguns segmentos da “boa sociedade” se manifestando contra a questão do aborto, no caso de uma criança estuprada por anos pelo tio. Preocupados com a vida do feto ainda em formação, fruto de uma violência sem tamanho, ninguém desse referido grupo se preocupava com a vida da criança, violada de tantos modos, e com a aniquilação de seus direitos.

Por que tanta preocupação com o controle do corpo da mulher, a não ser pela afirmação de poder? E, neste caso, alguns homens e mulheres agem como cúmplices na direção de algo que parece muito mais uma tentativa de controle e de intervenção do que direito à vida. Se não fosse assim, a primeira vida a ser defendida e cuidada naquele caso seria a da criança violada, e não a do feto que ainda nem formado estava.

Pior, começamos a discutir qual vida vale mais. E, no absurdo de tal raciocínio, a menina violentada já começa em desvantagem pelo fato de ser menina e, portanto, culpada por natureza, ainda que estejamos nos referindo à infância, uma fase por muitos considerada como inocente.

Espectros da violência contra a mulher

A misoginia está entre nós de muitos modos. E, percebendo ou não, nos posicionamos contra ou a favor dela. Todo ato de violência contra a mulher se origina da misógina, mas a impunidade e a leniência com tais atos são também práticas misóginas, porque reforçam essa cultura violenta, que tem no desprezo pela mulher um traço característico.

É preciso falar sobre isso, porque é preciso mudar esse registro cultural. Devemos lembrar que somos produto de uma cultura que foi construída dessa forma e não de outra, porque interessava que assim fosse para alguns grupos. Mas podemos nos perguntar se essa cultura efetivamente nos representa e, ao fazermos, devemos entender que o que foi construído pode ser desconstruído e reconstruído, dando lugar a algo que nos represente melhor.

Perspectivas para o 8 de março

No Dia Internacional da Mulher, ao invés de darmos parabéns umas às outras (o mesmo se estende aos homens), devemos nos unir, sinceramente, contra todos os modos de opressão contra as mulheres, devemos perder a vergonha de dizer que somos todos e todas feministas, porque isso nada mais significa do que reconhecer as mulheres como sujeitos de direitos e fazer de sua luta – não importando se são brancas, pretas, indígenas, imigrantes – a nossa própria luta.

Reconhecer coletiva e publicamente que é preciso resistir para existir, em seu sentido mais amplo, porque quem mandou matar Marielle Franco pode também mandar nos matar a qualquer momento, se não nos comportarmos como o prescrito, se defendermos uma sociedade diferente daquela que os mandatários no poder almejam para nós, mas a luta continuará nas tantas sementes plantadas.

Por isso, ao invés de nos parabenizar no Dia Internacional da Mulher, devemos nos unir – homens e mulheres – na trincheira diária pelo direito de existir e de sermos reconhecidas e respeitadas pelo que somos e defendemos, sem termos que morrer por isso.

Evelyn de Almeida Orlando é professora da Pontifícia Universidade Católica do Paraná/PUCPR, na Escola de Educação e Humanidades – Programa de Pós-Graduação em Educação. Vice-Coordenadora do GT de História da Educação da ANPUH/PR. Editora da Revista de História e Historiografia da Educação. Editora Associada da Revista Brasileira de História da Educação/SBHE.