A história humana possui resquícios de busca do Sagrado, mas também de privilégios terrenos. (Imagem: Pixabay). 

 

O final de semana passado – 26 e 27 de março de 2022 – foi, pelo menos, interessante: um grande festival musical, o Lollapalooza, aconteceu no autódromo de Interlagos, em São Paulo, e a entrega do Oscar, em Los Angeles nos Estados Unidos.

Como todo evento repleto de público e de celebridades, polêmicas não faltaram: em São Paulo, a manifestação de uma cantora comoveu até o Tribunal Superior Eleitoral e, em Los Angeles, um tapa abalou as redes sociais. Entretanto, não podemos nos esquecer de que os acontecimentos da semana anterior já tinham deixado “em polvorosa” as redes sociais e a própria sociedade.

Embora o uso da máscara tenha se tornado opcional, ainda enfrentamos a pandemia de COVID-19. Talvez esteja mais silenciosa, mas coloca em risco sistemas de saúde e, consequentemente, vidas de muitas pessoas. A guerra segue em curso na Ucrânia e já passa de um mês sem acordo de paz no horizonte. Desenvolvemos uma nova modalidade de corrupção na política brasileira, o “amensalão”, que envolve religiosos que sabem dizer “amém” a barras de ouro e não a Deus.

Se nos determos um pouco no que assistimos na semana passada, especialmente no final de semana, chegaremos inevitavelmente a uma conclusão: o pecado – aquele do livro do Gênesis! – está muito presente.

Com o passar os séculos, o Cristianismo, principalmente no Ocidente, perdeu a noção de pecado que está presente tanto no Antigo, como no Novo Testamento. Em primeiro lugar, pecado não é um problema individual; é uma realidade comum, isto é, que afeta toda a humanidade, como afirma Paulo na Carta aos Romanos (Rm 5,12). Em segundo lugar, o pecado não pode ser restringido a problemas sexuais; trata-se da negação radical de Deus e da perversão de sua Criação (Rm 8,20.22). Em terceiro e último lugar, o pecado é uma realidade propriamente teológica e não meramente psicológica.

O Apóstolo remarca a dureza e a maldade do pecado em contraposição à bondade e generosidade da Redenção de Jesus Cristo. “Todos pecaram”, mas todas e todos recebem os benefícios da graça de Cristo (Rm 6,6-11) e, nele, se tornam novas criaturas (2Cor 5,17). Entretanto, como os Padres da Igreja insistiram nos séculos II, III e IV, o que não é assumido, não é redimido. Nesse sentido, a humanidade tem que parar de viver como se o pecado fosse um simples transtorno de indivíduos; o pecado da humanidade é real e, tristemente, está muito presente.

Além de se mostrar mentiroso, inepto e corrupto, o atual governo do Brasil é pecador. O que aconteceu no final de semana passado mostra isso claramente: diante de um gesto de 10 segundos de uma cantora sobre o palco de um festival musical, os comparsas do Sr. Presidente da República acionaram um tribunal superior, mas fingiram que nada acontecia diante das gravíssimas acusações de desvio de recursos da Educação. E o pior: estão envolvidos nesse escândalo homens que se dizem “de Deus”.

Mentir é pecado; não ser diligente ao exercer uma função pública é pecado; ser corrupto é pecado; usar o nome de Deus para desviar recursos que deveriam ser usados para a educação de crianças e adolescentes não é só pecado, é abominação! Por isso, o atual governo e seus apoiadores são pecadores públicos!

Muitos podem estar pensando que durante a cerimônia do Oscar as piadas de um dos apresentadores com uma atriz, que inclusive levou seu esposo à agressão física contra o apresentador, seja pecado. Sim, bullying é pecado! Mas o maior pecado está na própria premiação do Oscar e o modo como é realizada. Em um mundo, no qual crianças morrem de fome e mulheres e homens não têm a mínima assistência para uma vida digna, o desfile de luxuosos vestidos e caríssimas joias sobre um tapete vermelho é pecado.

Alguns até podem afirmar que, sobre esse mesmo tapete, as celebridades podem protestar, como de fato o fizeram contra a guerra na Ucrânia; mas o maior protesto seria não participar dessa exibição de luxo e riqueza em um mundo ainda de pobres e miseráveis.

E, por falar na Ucrânia, ali também há pecado: claramente, está o pecado da guerra, da matança de civis e da expulsão de milhões de seres humanos de seus lares. Porém, da mesma forma que a Rússia de Vladimir Putin peca contra a população civil da Ucrânia, o Ocidente peca ao destacar somente essa guerra em sua mídia e simplesmente virar as costas para conflitos muito mais sangrentos, como a guerra do Iêmen que já matou mais de 200 mil pessoas e empurrou, pelo menos, 4 milhões de crianças para a miséria e a desnutrição.

Possivelmente, o excesso de informação sobre a guerra na Ucrânia esteja no fato de o país fazer fronteira com membros da União Europeia e colocar em xeque a “crença” de que os Estados Unidos da América ainda sejam a superpotência do século passado. Claramente, o Ocidente vê na invasão russa do território ucraniano uma ameaça a seus próprios interesses e, portanto, pode se dar ao luxo de não olhar para a morte de pobres e miseráveis no Oriente Médio, no continente africano e no sul da Ásia.

 Todo aquele que causa a guerra, como Vladimir Putin, o presidente do Iêmen, o exército de Mianmar e as forças paramilitares do Haiti, peca! Mas todo aquele que vira suas costas para o massacre de vida inocentes por não afetarem seus interesses, como o Ocidente faz, também peca!

O fim de semana dos dias 26 e 27 de março nos mostrou a gravidade e a profundidade do mesmo pecado no qual o primeiro casal humano incorreu: “e sereis como deuses” (Gn 3,5). Por mais que se apresentem como todo-poderosos, o atual governo brasileiro, seus apoiadores, seus homens “de Deus”, os que vivem do luxo e do excesso e os poderosos do mundo não o são. De fato, contemplamos a presença de Deus não no poder e na soberba, mas na pobreza e no abandono.

Ignacio Ellacuría, filósofo e teólogo da Libertação, refletia já na década de 70 do século passado sobre os povos crucificados pelo pecado do mundo. Hoje, são muitos! Estamos para fazer memória da Páscoa de Jesus Cristo, na Semana Santa, e agradecer a Deus porque seu Filho assumiu o pecado do mundo para a salvá-lo. Mulheres e homens, idosas, idosos e crianças são hoje crucificados por um pecado sempre presente; não viremos as costas para esse pecado, pelo contrário, sejamos corajosos para encará-lo e, assim, com a graça do Nazareno, superá-lo.

* Pe. Matheus da Silva Bernardes é sacerdote da Arquidiocese de Campinas/SP e professor de Teologia da PUC-Campinas.