A América Latina é profundamente marcada pela pobreza dos povos indígenas colonizados. E a religião contribuiu para isso. (Imagem: Pixabay)

Ainda que para muitas pessoas a religião seja uma ação que se julga vinda dos céus, ela não deixa de ser uma ação humana sujeita às contingências de fatores históricos, como qualquer outra ação. Por isso, a ótica de Enrique Dussel nos atenta às particularidades da história humana para uma compreensão libertadora da religião.

Dussel é argentino, nascido em 1934 e desde 1975 vive no México. No campo da Filosofia da Libertação, é um dos maiores expoentes do pensamento latino-americano em suas interfaces filosóficas. É autor de uma grande quantidade de obras, discorrendo sobre temas como filosofia, política, ética e teologia. Crítico do pensamento eurocêntrico contemporâneo, Dussel tem se colocado como crítico da pós-modernidade, chamando por um novo momento denominado transmodernidade.

O tema da “Libertação”

Conforme já apontamos em postagens anteriores aqui no blog, desde os tempos mais remotos podemos observar que a humanidade sempre foi marcada por minorias privilegiadas e maiorias oprimidas. A luta por espaço, por território e por alimento qualificou ao homem um papel de necessidade de dominação e de resignação ao ser dominado e, sobretudo, de acostumar-se a utilizar da violência como instrumento para se conseguir êxito ou como forma de defender-se em meio a potenciais ameaças. 

Com o advento da abertura para o sobrenatural ao longo de séculos, há registros de que as primeiras religiões não foram ferramentas utilizadas apenas para potencializar o relacionamento humano com um ser transcendente. Elas foram também uma alternativa encontrada para a realização de controle social – algumas delas sem o uso (aparente) da violência física – munindo-se da criação de mistérios, do medo do desconhecido, do respeito ao sagrado e tantos outros aspectos para oprimir, submeter, evitar ameaças e amenizar as intempéries da vida.

Libertação na Bíblia e na América Latina

Ao retratar a história do povo de Israel no Egito, demonstrando que vivia sob um regime escravista, Dussel demonstra que a situação da América Latina se repete do mesmo modo na história. Afinal, em seus escritos sobre a Filosofia da Libertação, o filósofo aborda a temática da religião antifetichista, demostrando duas de suas funções: a primeira enquanto possibilitadora de dominação e também de um serviço libertador e, a segunda, como forma de atuação superestrutural e infraestrutural.

Ao destacar essa especificidade da religião, este importante filósofo demonstra que ela tem um papel de tomada de posição, de atitude e também de uma responsabilidade prática com aqueles com quem se relaciona. Ao destacar que, na dimensão de dominação da consciência, ela pode ser um fetiche, uma idolatria, ele também a apresenta como libertadora, destacando que pode estar à serviço da causa dos pobres, oprimidos e excluídos.

Nesse contexto todo, é possível entendermos que o uso ideológico da fé popular, seja mais explícita, seja mais sutil ou velada, não contribui para que a religião seja um instrumento de libertação verdadeiro. Afinal, a religião necessária para os dias de hoje é aquela que dialoga não apenas com o divino, mas que também é fundada no respeito e acolhida das diferenças, no pluralismo como um pressuposto para pensar as identidades e o ser humano de maneira completa, indo contracorrente para romper com a nossa triste história.

Os riscos do uso ideológico negativo da fé popular

O que Dussel demonstra com sua filosofia é que a religião necessária para os dias de hoje é aquela que não apenas faz mediação de salvação com o gênero humano, não só caminha com ela, mas sobretudo, está interagindo e contribuindo na definição dos rumos da humanidade, de maneira a renunciar a qualquer postura apologética. Certamente, a resposta que o homem pós-moderno espera hoje da religião é o reencantamento com sua proposta. E esta precisa passar pela prática pastoral de um autêntico humanismo, aberto e comprometido com a defesa e promoção da vida, tanto dentro quanto fora de seus templos.

Entendendo a crítica que Dussel faz à religião, em especial seu posicionamento na colonização da América Latina, é possível hoje, já presentes no século XXI, compreendermos que o ethos religioso pode ser um alicerce para as bases de nossa sociedade quando integradas de maneira harmoniosa, como por exemplo no campo da economia, da política, da educação, da saúde… Cabe ainda ressaltar que a religião que o homem espera para o mundo de hoje necessita possibilitar o exercício da criatividade para ousar mais – não de modo aventureiro e solitário – mas solidário, arriscando-se mais pelos pobres e fazendo valer seus preceitos inspiradores.

O caminho que a religião precisa fazer para acompanhar o homem de hoje, pois ao longo de suas trajetórias acabaram (in)equivocadamente separando-se é o de romper com um passado vicioso e compreender que precisa estar muito mais ligada à vida do homem do que simplesmente dar diretrizes, superando a ótica de “submissão” para romper com qualquer tipo de violência, escutando o grito de quem necessita. E que mesmo em meio a avanços e retrocessos possa compreender à luz da experiência do passado e fiel à realidade de hoje, para que a religião do futuro possa ser baseada mais em boas ações do que em palavras vazias.

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Ana Beatriz Dias Pinto, é comentarista convidada do blog e nos traz reflexões sobre temas atuais e contextualizados sob a ótica do universo religioso, de maneira gratuíta e sem vínculo empregatício, oportunizando seu saber e experiência no tema de Teologia e Sociedade para alargar nossa compreensão do Sagrado e suas interseções.