Natal, festa da família? De que família estamos falando? (Imagem: Pixabay) 

 

No começo da década de 80 do século passado, uma expressão de Margaret Thatcher se tornou muito conhecida: “Essa coisa de sociedade não existe; o que existe são homens e mulheres, indivíduos e suas famílias”. O Reino Unido passava por um momento de grande ajuste social e econômico e a Dama de Ferro precisava conduzir seu país aos portos do neoliberalismo que conquistaria o mundo todo, poucos anos depois.

Evidentemente, nesse cenário a família nuclear heterossexual se apresentava como perfeita alternativa para a realização do ambicioso projeto neoliberal marcado pelo acúmulo de capital e pelo elevado índice de consumo. Claro, a sociedade tinha que ser lançada pela borda porque suas demandas, especialmente aqueles diretamente ligadas à segurança social como educação, saúde e previdência, eram caras demais. Logo, “essa coisa de sociedade não existe”.

Qual foi o resultado? Aquelas e aqueles que não se encaixavam dentro do padrão acima descrito foram simplesmente excluídos. Não nos referimos somente às famílias homossexuais, mas sobretudo às empobrecidas e aos empobrecidos que custam caro demais para o Estado; não constituem a “família tradicional” porque simplesmente não podem e estão muito abaixo dos níveis de consumo exigidos pelo mundo neoliberal.

Infelizmente, nós, cristãs e cristãos, não podemos nos eximir da culpa de ter criado um mundo de “famílias excludentes”. Basta nos lembrarmos do tanto que João Paulo II e seus cooperadores mais íntimos, do lado católico, e os diversos seguimentos evangélicos, sobretudo os neopentecostais, defenderam – e ainda defendem – essa “família tradicional excludente”.

Talvez, o pior cenário possível para aquelas e aqueles que são deixados de lado por esse modelo – porque não conseguem consumir, não nos esqueçamos! – surgiu na última década em que a “família tradicional excludente” se tornou pauta central de um debate político polarizado mundo afora.

A partir dessa reflexão, vale nos perguntarmos: o Natal é uma festa da família? De que família? Dessa “família tradicional excludente”? Aqui é preciso voltar ao Evangelho e nos confrontarmos com o que o próprio Jesus fala sobre a família.

“Quem é minha mãe, e quem são meus irmãos?” E, estendendo a mão para os discípulos, Jesus disse: “Eis minha mãe e meus irmãos. Pois todo aquele que faz a vontade do meu Pai, que está nos céus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe” (Mt 12,48-50). Para Jesus os vínculos familiares estão além de laços sanguíneos e do parentesco político. Os membros de sua nova família são aquelas e aqueles que cumprem a vontade de seu Pai.

Outro texto evangélico, próprio do tempo do Advento, nos dá mais pistas sobre essa nova família de Jesus. Depois de ter recebido o anúncio do anjo, Maria vai apressada à região montanhosa da Judeia ao encontro de Isabel (Lc 1,39-45). Segundo o relato do anúncio, Isabel é “parenta” de Maria (Lc 1,36); o que é ser “parenta”? Isabel e seu esposo Zacarias são da descendência de Arão, da linhagem sacerdotal; Maria e seu esposo José, da descendência de Davi. Ambas as linhagens não se misturavam, logo Isabel e Maria não poderiam ser “parentas” de sangue.

Comumente, afirmamos que seriam primas; porém, a melhor palavra para expressar a relação de ambas é irmãs. Sim, Isabel e Maria são irmãs. Porém, não pelo sangue ou por laços políticos, mas irmãs pelo vínculo do Espírito. O Espírito que fecundou o seio de Maria, de quem nasceu o Salvador (Lc 1,35), é o mesmo Espírito Santo que fez a criança pular de alegria no ventre de Isabel (Lc 1,44). Seu vínculo familiar é muito mais forte que o sangue e relações políticas; é o vínculo do Espírito.

Além disso, há uma condição que une Isabel e Maria em uma mesma família: ambas são mulheres da periferia. Isabel, apesar de ser da linhagem sacerdotal, vivia distante do centro do poder religioso. Maria, em Nazaré na Galileia, onde sequer havia casas e seus habitantes moravam em grutas. Duas mulheres da periferia, às quais outras tantas e outros tantos se unirão, constituem a nova família de Jesus pela ação do Espírito Santo. 

Em Jesus, já não somos mais estrangeiros, formamos uma só família (Ef 2,19); não há mais judeus ou pagãos porque o muro da inimizade foi derrubado (Ef 2,14-15). Ele congrega em torno de si, pela ação do Espírito Santo, marginalizadas e marginalizados, como os pastores de Belém, que glorificaram a Deus nos céus e desejaram paz às mulheres e aos homens na terra. (Lc 2,14). A família de Jesus é a família dos pobres unidos pelos laços do Espírito. Sim! Natal é a festa dessa família!

Não é festa daquela “família tradicional excludente” defendida pela primeira ministra britânica acima mencionada. Não é festa da família que pode até rezar ou ir à missa, mas não tem o menor pudor de se reunir em torno de mesas fartas, em um mundo faminto; da família que não tem a menor vergonha de trocar presentes embrulhados em papéis com a estampa de um senhor de barba branca e vestido de vermelho, em um mundo de empobrecidas e empobrecidos. Não! O Natal não é festa de uma família assim!

É festa da família de Jesus! Por isso, no lugar de tantos excessos e exageros – que não são diminuídos só porque cantamos “Noite Feliz” diante do presépio -, que este Natal seja festa dos pobres, dos miseráveis, daquelas e daqueles que Deus, em Jesus seu Filho e pela força do Espírito, escolheu para fazerem parte de sua verdadeira família!

* Pe. Matheus S. Bernardes é sacerdote da Arquidiocese de Campinas/SP e professor de Teologia da PUC-Campinas.