Vaticano: papa Francisco decide evitar divisões na Igreja Católica, fomentada pelo uso de liturgias de séculos passados. (Imagem: Pixabay)

Versus Deum, versus populum (I)

Um breve comentário sobre o motu proprio Traditionis Custodes do Papa Francisco

Normalmente, usamos este espaço para fazer alguns comentários, a partir da Teologia, sobre a situação sociopolítica do país. Contudo, estando o mandatário principal da República internado e se esforçando para fazer o “número 02” por vias corretas e não pela boca, como normalmente o faz, vamos nos dedicar a temas “mais igrejeiros”.

Na manhã do dia 16 passado, Francisco nos surpreendeu mais uma vez: publicou a carta apostólica em forma de motu proprio Traditionis Custodes. Traduzindo, trata-se de um documento que tem o peso de lei e que deve ser acolhido como tal por todas as católicas e todos os católicos. Qual é o tema desse motu proprio? A limitação do estabelecido em outro motu proprio, publicado pelo seu antecessor Bento XVI, em 2007. Mas do que trata tanto motu proprio? Da autorização concedida por Bento XVI, agora limitada por Francisco, para que a celebração da Eucaristia pudesse ser realizada de acordo com o missal publicado Pio V, em 1570, e reeditado por João XXIII, em 1962.

Um pouco de história não faz mal para ninguém! No século XVI, a Igreja Católica foi profundamente desafiada pela Reforma Protestante, levada adiante especialmente por Martinho Lutero, João Calvino e Henrique VIII. Sem entrar em maiores detalhes teológicos e políticos da época, a resposta católica à Reforma veio com o Concílio de Trento, realizado entre os anos (1545-1563), e com o movimento que dele nasceu. Uma característica muito marcante do movimento pós-tridentino foi a afirmação do era “legitimamente” católico para contrapor o que estava acontecendo nas igrejas reformadas. É desse tempo, por exemplo, a constituição dos seminários e a centralização do ensino da Teologia (scientia sacra) nessas instituições. Por outro lado, também era preciso dar destaque à ação mais visível da Igreja: a liturgia.

Não é do período, porém, a centralidade da liturgia na vida da Igreja: é muito antiga, do tempo do Novo Testamento e dos Padres da Igreja. Mas segundo a compreensão antiga, a liturgia jamais poderia ser celebrada distante da comunidade e de suas necessidades básicas. A liturgia não era simplesmente a performance de um ministro ordenado, mas era verdadeira oração da Povo de Deus reunido em Jesus Cristo pela ação do Espírito. As cristãs e os cristãos eram abraçados pela celebração litúrgica e, a partir dela, podiam sair pelas ruas e praças para dar testemunho da Boa-nova do Reino. De fato, foi isso que aconteceu com as e os incontáveis mártires dos primeiros séculos cristãos.

Não obstante, com o passar dos séculos – e aqui é preciso fazer uma referência histórica precisa, a conversão do Império Romano à força da espada de Constantino ao Cristianismo –, a liturgia se torna cada vez mais uma performance sacra que oração do Povo ou ação do Povo, como indica sua etimologia (as palavras gregas laós, povo, e ergón, obra ou ação, resultam na palavra leitourgía, liturgia). A performance litúrgica ou até o espetáculo litúrgico se distancia ainda mais do Povo de Deus na Idade Média com a vida dos mosteiros e das grandes catedrais.

Entendemos, portanto, que o movimento pós-tridentino tenha querido remarcar ainda mais essa liturgia performática ou espetacular. O ministro ordenado ou, como muitos ainda insistem em dizer, o ministro sagrado reza a missa versus Deum olhando para a eternidade simbolizada no altar; reza em latim, considerado não só idioma eclesiástico, mas idioma sagrado; e revestido com vestes litúrgicas e sagradas. O que infelizmente aconteceu com a liturgia pós-tridentina foi, de fato, a separação visível e total entre o celeste e o terrestre, entre o sagrado e o profano, entre o clero e o povo. O clero, representante da única Igreja de Cristo, estava de costas para o povo que vivia entre as mazelas e perrengues do mundo.

Foram mais de quatro séculos para redescobrir a riqueza da liturgia, como celebração do Povo de Deus reunido em Jesus Cristo pela ação do Espírito, como celebração do mistério pascal de Cristo presente em sua comunidade. O Concílio Vaticano II, precedido por diversos movimentos – vale a pena destacar especialmente o movimento litúrgico das abadias beneditinas e o movimento patrístico das faculdades de Teologia alemãs, flamencas e francesas – declara mediante a Constituição Conciliar Sacrossantum Concilium a reforma da liturgia.

No número quatorze da constituição lemos: “É desejo ardente da mãe Igreja que todos os fiéis cheguem àquela plena, consciente e ativa participação nas celebrações litúrgicas que a própria natureza da liturgia exige e que é, por força do Batismo, um direito e um dever do povo cristão, ‘raça escolhida, sacerdócio real, nação santa, povo adquirido’.” (1Pd 2,9; 2,4-5).

Talvez seja a formulação “participação plena, consciente e ativa” a que tenha conduzido o maior número de mudanças na celebração litúrgica: já não se reza mais versus Deum, mas versus populum (de frente para o povo); a distância entre o ministro ordenado e o povo deve ser diminuída – de fato, a reforma litúrgica exigiu adaptações no espaço litúrgico que já não mais remarcar a separação do sagrado e do profano, mas a presença do mistério pascal de Jesus Cristo em sua Igreja; a Palavra ocupa lugar central durante a celebração litúrgica, afinal de contas sem ela, que proclama o que está sendo celebrado, os Sacramentos podem ser confundidos com rituais mágicos; o idioma da celebração é o idioma que se fala no lugar (conhecido como vernáculo). Mas o mais importante: a liturgia é celebração do Povo de Deus; não é âmbito para intimismos e individualismos, é o lugar próprio de encontro com o Senhor Ressuscitado em sua comunidade orante, comunidade que rende graças (do grego, eucharistein) por sua presença entre nós.

Tudo muito bonito até aqui, mas é precisamente aqui que está o problema que levou Bento XVI ao motu proprio Summorum Pontificum de 2007 e Francisco ao motu proprio Traditionis Custodes do último dia 16. Mas isso será tema para nossa próxima reflexão.

* Padre Matheus da Silva Bernardes é  presbítero da Arquidiocese de Campinas. Vigário paroquial da Paróquia Santo Cura D’Ars, em Campinas, e professor de Faculdade de Teologia da PUC-Campinas.