Pilatos lavou as mãos. E o Sr. Presidente da República foi passear de moto (Imagem: Google Images)

Na liturgia da Sexta-feira Santa, lemos a Paixão de Jesus segundo o quarto Evangelho. A narrativa é dramática, principalmente pela confissão do reinado de Jesus, o motivo de sua condenação à morte. Quem se opunha ao poder de César, fazendo-se rei, deveria ser morto (Jo 19,12). O texto bíblico nos leva a uma reflexão importante: teria sido Jesus condenado por crimes políticos? O Nazareno morreu por ser um subversivo social? A resposta é sim. O julgamento de Jesus teve clara conotação política; não se trata somente de uma condenação por um crime religioso.

Por outro lado, os judeus afirmaram a Pôncio Pilatos que ele deveria morrer por se fazer Filho de Deus (Jo 19,7). A leitura superficial da passagem pode nos conduzir a uma conclusão apressada, que apontaria a morte de Jesus como pena de um crime religioso. Além disso, pesa o fato de que os Evangélicos sinóticos narram imediatamente antes de sua prisão e sua condenação à morte a “purificação do Templo” (Mc 11,15-19 e par.); no quarto Evangelho, a cena aparece no capítulo dois. Logo, como muitos concluímos, Jesus teria sido morto por cometer crimes contra a religião dos judeus. Mas seria somente isso?

Chama a atenção o fato de que, embora tenha cometido crimes contra o Judaísmo de então, Jesus não poderia ser condenado à morte pelos judeus. Quem o condenou à morte foi Pilatos, o governador da província romana da Judeia, portanto, um político. Qual teria sido o crime político de Jesus de Nazaré? Fazer-se rei, como já foi mencionado anteriormente.

Não obstante, como o próprio Jesus diz a Pilatos, seu reino, ou melhor, seu reinado não é deste mundo. Novamente, temos que tomar cuidado para não “espiritualizar” o relato da Paixão do Senhor e, consequentemente, toda a vida do Nazareno. Mesmo que o quarto Evangelho não desenvolva tanto a noção quanto os Evangelho sinóticos, Jesus está se referindo ao “reinado de Deus”, ou seja, à irrupção de Deus na história em favor dos pobres.

“Reinado de Deus” não é uma categoria “espiritualista”, como muitos infelizmente pensamos. Trata-se de uma noção teológica, mas também política, como é possível ler nas páginas do Antigo Testamento. Deus irrompe na história e suscita esperança história, sobretudo entre aquelas e aqueles que são excluídos e oprimidos (Ez 37,4-6; Is 11,6). O “reinado de Deus” deve ser entendido como ação histórica e libertadora, capaz de transformar a situação má e injusta dos povos, em uma realidade boa e justa (Sl 96,13).

Por conseguinte, a vida e a pregação de Jesus de Nazaré suscitam a esperança histórica dos povos. Convenhamos, nada mais perigoso que a esperança, principalmente para o establishment. Evidentemente, Jesus ao “purificar o Templo” confrontou o establishment religioso dos judeus; mas ele também confrontou o establishment político romano ao suscitar esperança histórica e popular.

Bem distinta da noção dos zelotes de seu tempo, Jesus anunciou chegada do “reinado de Deus” não pela força das armas, mas pela ação da graça. Sua instauração no mundo não acontece pelo surgimento de uma nova soberania territorial, mas pela proclamação da bondade e da misericórdia divinas que restauram a humanidade de todas e todos, sobretudo daquelas e daqueles que a têm negada pela pobreza e pela miséria social e econômica.

O “reinado de Deus” anunciado e levado a cabo por Jesus de Nazaré, o real motivo de sua condenação à morte, possibilita contemplar novos horizontes sociais e, portanto, políticos, nos quais a vida é defendida e a dignidade é preservada. O projeto “político” do Nazareno ameaçava diretamente os poderes de seu tempo – concretamente, as forças do Imperador e de todos aqueles a ele associados, incluindo os judeus do Templo. Tal ameaça o levou à morte e morte de Cruz, ou seja, morte ignominiosa, como o hino da carta aos Filipenses proclama (Fl 2,8).

Pilatos, sim, foi responsável pela morte de Jesus. E com ele, todos os representantes do establishment. Depois de condená-lo, o que Pilatos fez? Lavou suas mãos (Mt 27,24). O quarto evangelho não apresenta essa cena; inclusive, dá a ideia de que os judeus seriam até mais responsáveis pela morte de Jesus que o próprio Pilatos. Mas isso não é bem assim. A leitura do texto aponta mais a uma controvérsia interna da “comunidade do discípulo amado” que a uma isenção da culpa do governador romano.

Ao lavar suas mãos, Pilatos fez o que o establishment sempre fez e continua a fazer: não assumir sua responsabilidade pela exclusão e pela opressão. Muito se equivoca quem pensa que os poderes estabelecidos pretendem “manter a paz”. O que, de fato, pretendem é “manter o poder”.

Em sua campanha eleitoral de 2018, Jair Bolsonaro insistiu em dizer que não representava o establishment político brasileiro; era representante da “nova política”. O que ele não conseguiu – e não consegue até o momento – é responder o fato de que, há mais de vinte anos, ele e seus familiares vivem do establishment. Sejamos sinceros: Bolsonaro não representa o establishment político brasileiro, representa, sim, o que pior há nele: corrupção, maracutaias, negociatas, defesa de interesses próprios e desprezo pela vida do povo simples.

Se, naquela sexta-feira, Pilatos lavou as suas mãos, nesta sexta-feira Bolsonaro passeou de moto. Não é a primeira vez que ele e seus apoiadores realizam esses passeios infames que mais se parecem com uma procissão de fanáticos e lunáticos. “Eu não sou coveiro”, disse o Presidente quando questionado pelo número de mortos na pandemia de COVID-19. “Em 100 anos saberá”, afirmou quando questionado sobre os recentes escândalos no Ministério da Educação.

Mais de 660.000 brasileiras e brasileiros perderam suas vidas pela irresponsabilidade do atual governante. Inúmeras crianças e adolescentes não recebem educação de qualidade porque pastores, amigos do atual governante, exigem “contrapartidas”. Milhões de pessoas, no país, passam fome porque o atual governante e sua equipe, sobretudo seu ministro da Economia, são incapazes de contar a alta dos preços. A vida de milhares de pessoas está em risco pela soberba e ineficácia do atual governante. Como Jesus, mulheres e homens, crianças e idosos são condenados a carregar a pesada cruz da exclusão, da miséria, da pobreza e da miséria.

Jesus de Nazaré foi condenado à morte, injustamente, por ter sido considerado um risco ao establishment. Pilatos, aquele que o condenou, lavou suas mãos. Brasileiras e brasileiros são condenados injustamente à morte, não porque sejam uma ameaça, mas simplesmente porque não importam ao atual establishment. Bolsonaro, aquele que os condena, passeia de moto.

* Pe. Matheus da Silva Bernardes é sacerdote da Arquidiocese de Campinas/SP e professor de Teologia da PUC-Campinas.