Transhumanismo: a filosofia tem se perguntado sobre a interação dos seres humanos e máquinas (Imagem: Pixabay)

Já assistiu Black Mirror, a aclamada série inglesa, carro chefe da Netflix? Se sim, você, como muitos, teme o futuro. Não somente as futuras ações humanas, mas a conjunção destas com as super tecnologias que já estão em desenvolvimento.

A engenharia genética, a nanotecnologia e a robótica são as mais promissoras e já estão dando seus frutos. Podemos destacar: Em relação a primeira delas, o desenvolvimento do método Crispr/Cas9 para edição de genoma, descoberto por Emmanuelle Charpentier e a Jennifer A. Doudna, laureadas com o Prêmio Nobel de Química de 2020[2]; em relação a segunda, a produção e comercialização de nano fármacos como o Abraxane, usado para reduzir os efeitos colaterais do tratamento de câncer [3]; e em relação à terceira, a robô humanoide Sophia, tornada cidadã da Arábia Saudita [4]. 

A ficção cientifica tem se concretizado em um ritmo acelerado. Segundo Ray Kurzweil, a tecnologia se desenvolve exponencialmente, crescimento que na maioria das vezes mal compreendemos. Vejamos o gráfico abaixo:

No gráfico acima [5], ambos os crescimentos aparentemente, em um primeiro momento, coincidem em velocidade. Porém, posteriormente há uma explosão de rapidez. Segundo Kurzweil, por volta de 2045 atingiremos a singularidade tecnológica, momento em que não haverá distinção entre humanos e máquinas ou entre realidade física e virtual, isto é, a fusão do nosso pensamento, de nossa existência biológica com nossa tecnologia.  Provavelmente sua preocupação aumentou bastante agora, afinal Black Mirror pode ter um fundo de verdade, não é mesmo? Mas por que a série é tão pessimista? Só me recordo de 2 episódios razoavelmente otimistas. Essa é uma das preocupações de Fereidoun M. Esfandiary (ou FM-2030, como é mais conhecido), um dos maiores nomes do Transhumanismo:

Os intelectuais ocidentais em particular, claudicantes pela culpa puritana e pelas dúvidas de si mesmos, inundam o mundo com livros, filmes e cenários que predestinam o futuro. Para eles nossos sucessos e potenciais não são reais. Somente nossos fracassos. Devemos desenvolver uma nova filosofia destemida do futuro. Uma visão de mundo esperançosa que possa encorajar as pessoas a querer enfrentar o futuro e a querer planejá-lo. [6]

Transhumanismo (preferimos a grafia com ‘h’ e as razões para isso estão explicadas no dicionário da Cultura da paz) é essa filosofia destemida do futuro ao qual o autor se refere. Se trata de um movimento filosófico e cultural que propõe o aprimoramento da humanidade por meio das tecnologias. Ele se associa a ideia da renovação do projeto moderno Humanista/Iluminista, fortalecendo este projeto na medida em que busca não só o aprimoramento humano, mas também a erradicação da pobreza, escassez de recursos, desigualdade social e de gênero tal como a crise climática e ambiental.

O movimento costuma ser resumido com os ‘3 supers’:
– Super longevidade (busca pelo prolongamento indefinido da vida);
– Super inteligência (aprimoramento dos processos cognitivos); e
– Super bem-estar (a eliminação de todo sofrimento desnecessário).

David Wood, um dos maiores nomes do Transhumanismo tecnoprogressista (vertente à esquerda no espectro político), inclui também o quarto ‘super’: Super democracia (aprimoramento da inclusão social e da resiliência, mantendo a diversidade e a liberdade – superando tendências humanas para o tribalismo, o sectarismo, o engano e o abuso de poder [8]).

Leitor, se você teme o futuro, acha que as famosas distopias de Orwell ou Huxley se concretizarão (curiosamente o criador do termo ‘Transhumanismo’ é justamente Julian Huxley, irmão de Aldous), que as desigualdades de toda ordem se aprofundarão, que o meio ambiente será aniquilado, argumento aqui que o Transhumanismo é justamente onde essas questões são discutidas com profundidade.

Não se trata somente de um grupo de entusiastas dos potenciais tecnológicos. São antes, ao menos alguns, pensadores preocupados em propor soluções para futuros problemas, como o desemprego e a extinção de muitas profissões na medida em que foram desempenhadas por inteligências artificiais ou problemas já milenares como a desigualdade. O que, em grande medida, caracteriza o ser humano é justamente seu potencial criativo e improvisador.

No entanto, embora vivamos em sociedades complexas e tecnológicas, nossa estrutura orgânica ainda é quase a mesma do paleolítico. Os humanos serão, dizem os transhumanistas, os próximos a se desenvolverem.

Em 1994, Marvin Minsky, importante cientista computacional, escreveu um texto que, em suas últimas palavras, capturou a essência do Transhumanismo, sendo talvez um bom resumo: “Os robôs herdarão a terra? Sim, mas eles serão nossos filhos. Devemos nossas mentes às mortes e vidas de todas as criaturas que estavam engajadas na luta chamada evolução. Nossa tarefa é fazer com que todo esse trabalho não seja em vão” [9].

Referências:

[1] Keoma Ferreira Antonio é filósofo transhumanista, doutorando em filosofia política e Ética pela UFRN. Alguém que ainda acredita que o Brasil tem jeito. Se gostar deste texto, leia também esse livro: clique aqui.  Ou, se preferir o PDF gratuitamente, basta clicar aqui

[2] https://revistagalileu.globo.com/Ciencia/noticia/2020/10/entenda-tecnica-crisprcas9-que-ganhou-o-nobel-de-quimica-de-2020.html

[3] https://canaltech.com.br/video/top-tech/5-invencoes-da-nanotecnologia-9866/

[4] https://www.techtudo.com.br/listas/2018/08/nove-curiosidades-sobre-sophia-a-primeira-robo-cidada-do-mundo.ghtml

[5] KURZWEIL, Ray. The Singularity Is Near: When Humans Transcend Biology. New York: Viking. 2005.

[6] ESFANDIARY, F. M. Up‐Wingers: A Futurist Manifesto, E‐Reads, 1973, pág.3

[7] SÍVERES, Luiz ; NODARI, Paulo César (Orgs.), Dicionário da Cultura de Paz, Volume 2; CRV, 2021.

[8] (Wood, np, versão Epub, 2018)

[9] https://web.media.mit.edu/~minsky/papers/sciam.inherit.html#:~:text=beyond%20our%20grasp.-,Will%20robots%20inherit%20the%20earth%3F,in%20the%20struggle%20called%20Evolution