Uma visita à modesta casa onde cresceu, no bairro do Queens, em Nova York, despertou certa nostalgia em James Gray. O diretor de Os Donos da Noite (2007) e Amantes (2008) tinha saído de duas produções maiores, Z – A Cidade Perdida (2016) e Ad Astra (2019), que foram projetos estressantes – o primeiro por ter sido rodado na selva, o segundo porque ele não teve o corte final. Em um jantar em Paris, Martin Scorsese lhe deu o conselho de lutar pelo que ama no cinema. E foi o que o cineasta fez. O resultado está em Armageddon Time, seu filme mais pessoal, em cartaz no Brasil.

O longa, exibido em competição no último Festival de Cannes, volta ao início dos anos 1980. O garoto Paul Graff (Banks Repeta) é uma versão do pequeno James Gray, vivendo com a mãe, Esther (Anne Hathaway), o pai, Irving (Jeremy Strong), e o irmão (Ryan Sell). O avô, Aaron Rabinowitz (Anthony Hopkins), é uma figura amorosa na vida do levado Paul, que, depois de aprontar na escola pública onde estudava, é transferido para um colégio particular, que tem como patronos Fred Trump (John Diehl) e sua filha Maryanne (Jessica Chastain). A história pode se passar nos anos 1980 e falar de uma vida familiar turbulenta, mas também é sobre o mundo de hoje.

“Eu acho que tudo que é pessoal e político se mistura”, disse Gray, um dia após a sessão de gala no Festival de Cannes, em uma mesa-redonda com a participação do Estadão. “A presidência de Donald Trump foi, para mim e para muitos americanos, bastante traumática. É um conforto pequeno saber que a maioria nunca votou pelo cara. De certa maneira, só nos lembra de como o sistema é desigual e falido.” O cineasta nota semelhanças com a ascensão de Adolf Hitler e lembra que o Partido Nazista também não teve a maioria. “A nossa sorte é que Trump é só um idiota charlatão. Mas claro que ele pode voltar, como um vírus.”

CENA ANTIGA. Em 1980, o pai de Donald Trump, Fred, era um exemplo de afluência. Certo dia, ele notou o menino com pasta na mão e, para Gray, identificou um judeu que não deveria estar naquela escola. Latiu para o garoto. A cena está no filme, assim como o discurso de Maryanne em que ela fala de esforço pessoal para vencer na vida. Já na época, o pequeno James achou aquilo estapafúrdio, porque era uma mulher nascida rica falando de meritocracia.

Para Gray, há uma linha clara ligando a ascensão de Ronald Reagan, que foi eleito presidente em 1980, e a chegada de Donald Trump, 36 anos mais tarde, ao mesmo posto. O título Armageddon Time refere-se ao senso de ameaça representado por Reagan. Era isso o que sentiam seus pais, progressistas. Para Gray, começaram ali as ações que levariam a mais desigualdade e a uma busca desenfreada pela riqueza, que desembocam em Trump.

RACISMO. Só que ele também examina o seu próprio privilégio. No filme, Paul fica amigo de Johnny (Jaylin Webb), um garoto negro que não tem casa e sofre racismo – até da própria família Graff, que se acredita progressista. Johnny é apontado como catalisador para o mau comportamento de Paul. E uma decisão que Paul toma em relação ao amigo tem um impacto fundamental. É algo que James Gray só percebeu mais tarde, mas que examina aqui, quase como um pedido de desculpas. “Uma coisa que amo no filme é que James pega um evento pequeno, mas nós, o público, percebemos a sua enormidade”, disse Jeremy Strong. “Muitos filmes agora falam sobre eventos enormes que, na verdade, são nada. Aqui é o inverso disso.”

FUTURO. Fazer um filme como esse é bem mais difícil agora. Ter o elenco que tinha em suas mãos ajudou bastante. Mas Gray teme pelo futuro do cinema. “As pessoas podem ter perdido o hábito de ver filmes na tela grande”, disse.

A solução, para ele, é uma só. “Os estúdios precisam passar quatro ou cinco anos perdendo dinheiro fazendo filmes de todo tipo. Porque durante muito tempo a indústria só alimentou um público que queria fast-food. Esse monstro foi criado pelos estúdios. E fez com que grande parte do público se sentisse alienado. Que frase você consegue citar de Aquaman, que fez 1 bilhão de dólares de bilheteria?”

O cinema reflete o sentimento de que só a grana importa. “Eu nunca fiz nada por dinheiro”, disse o cineasta, sabendo que é um privilegiado, dirigindo apenas os filmes que escolhe. “Mas hoje o bacana é fazer tanta grana quanto possível.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.