“O que Deus uniu o homem não separa”, disse Jesus citado por Mateus eLucas nos Evangelhos e repetido por milhões de padres ao redor no mundo- no altar. O divórcio separa uma outra união, feita pelos homensmesmo. Mas ainda há uma solução para quem sonha em se casar no altarpela segunda vez: o pedido de nulidade matrimonial. Atualmente, em SãoPaulo, existe um movimento composto por casais católicos provenientesde divórcio do 1º casamento que voltam a se casar na igreja. Mas como ohomem pode separar o que Deus uniu?

Ajuíza Josane Artacho, do Tribunal Eclesiástico Regional e de Apelaçãode São Paulo, diz que ele não pode. “O sacramento é indissolúvel. O quepode ser feito é provar que ele não foi válido.” Para isto, o casalprecisa achar um motivo (desde diferenças sobre crenças religiosas atéimpotência sexual) e encaminhá-lo ao Tribunal Eclesiástico, que pediráum questionário e alguns documentos. Na fase seguinte, um advogado doTribunal monta o processo. Entre a primeira e a segunda fase, o casalde divorciados pode esperar no máximo um ano e meio para receber o”sim” ou “não” antes de dizerem o tão esperado “sim” um ao outro.

Participantesde um movimento de casais em segunda união, os pecuaristas BráulioGonçalves, de 64 anos, e Simone Madeira, de 61, em breve entrarão com opedido de nulidade matrimonial de seus primeiros casamentos. Eles, quese conheceram há 48 anos e até namoraram por um tempo na adolescência,têm uma relação estável de 12 anos marcada pela participação ativa navida paroquial. Por isso a preocupação em estar em dia com Deus. “Sóentra com o pedido quem quer estar dentro das normas da Igreja”, dizGonçalves.

Quem se casa pela segunda vez apenas no civil éacolhido pela Igreja, mas não tem vida plena dentro dela. Os dois nãopodem receber, por exemplo, sacramentos como a penitência e aeucaristia. Movimentos como o do “Encontro com o Bom Pastor” (do qualfaz parte o casal de pecuaristas), que se reúne na Catedral da Sé, emSão Paulo, organizam encontros com palestras sobre a segunda união,além de depoimentos de casais que conseguiram subir ao altar pelasegunda vez. Segundo Gonçalves, 80% dos processos têm sucesso. “Osoutros 20% recebem parecer negativo porque não têm razões válidas”, dizele. Um exemplo é reclamar que a mulher não era virgem na época docasamento.

O processo de nulidade matrimonial tem um custo, quevaria de acordo com cada diocese. Em São Paulo, o valor fica em tornode 12 salários mínimos, ou R$ 4.200. “Ainda é bastante elitizado. OTribunal deveria estudar uma maneira de prestar trabalho voluntário acasais que procuram a segunda união mas não têm condições de obtê-la”,diz Gonçalves.

IMATURIDADE É MOTIVO MAIS COMUM

O livro”Casais em segunda união – Uma Pastoral de Esperança Misericordiosa”,escrito pelo Padre Luciano Scampini (Editora Santuário), traz umagrande relação das causas de nulidade matrimonial. A mais comum detodas elas, segundo a juíza Josane Artacho, é a imaturidade. “Ela estáem 90% dos pedidos”, diz Josane. “Ela acontece quando o casal nãoconsegue viver na prática a teoria, que inclui conceitos e deveres comoo bem comum do casal, comunhão de vida, geração e educação da prole,entre outros”, diz a juíza. Muitas vezes, a falta de um amor maismaduro soma-se a estes problemas.

Sobre a imaturidadepsicológica, Scampini escreveu: “Trata-se da imaturidade psicológica ougrave defeito de discrição de juízo que tira a responsabilidade e aponderação suficiente para casar Neste mundo pós-moderno os jovensdemoram a atingir a maturidade psicológica e afetiva para assumir asresponsabilidades da vida conjugal (…) O problema é ‘não ter’ averdadeira capacidade para assumir.”

Aqui estão algumas causas da nulidade de casamento que aparecem no livro de Scampini, todas tiradas do direito canônico:

– A idade: o homem antes dos 16 anos de idade e a mulher, antes dos 14, não
podem contrair matrimônio válido;

– Impotência sexual;

– Rapto ou violência: o casamento entre um homem e uma mulher raptada com o
intuito de casamento ou ameaçada não é válido, a não ser que depois,
separada do raptor, a mulher escolha espontaneamente o matrimônio;

– consangüinidade;

– Parentesco legal: torna inválido o matrimônio entre pessoas ligadas por
parentesco legal produzido por adoção;

– Os que não têm suficiente uso da razão: os que sofrem de algum transtorno
mental quando vão prestar o depoimento.

Juíza explica os passos para quem quer se casar na igreja pela segunda vez

Ajuíza do Tribunal Eclesiástico Regional e de Apelação de São Paulo,Josane Artacho, fala, em entrevista à Agência Estado, sobre os pedidosde nulidade matrimonial.

AGÊNCIA ESTADO – O que mudou nos pedidos de nulidade matrimonial nos últimos anos?

JOSANE ARTACHO – Nada. O que mudou é que o processo está sendo mais difundido.

AGÊNCIA ESTADO – O que é preciso para entrar com o processo?

JOSANEARTACHO – Para entrar com o pedido, é preciso ver se há fundamento.Isso é feito pelo Tribunal Eclesiástico, que fica na Av. Higienópolis,901. Se for confirmada a hipótese de que houve um casamento nulo, seráentregue ao casal ou a um dos cônjuges um questionário que trata davida a dois, desde a época do namoro até a separação. A pessoa entãovolta com o questionário completo e os documentos solicitados. Emseguida, um advogado do Tribunal monta o processo, resumindo ohistórico e fazendo o libelo – que é uma peça que introduz o processo,argumentando o porquê do pedido de nulidade. Na seqüência, se inicia otrâmite normal. A pessoa que introduz o processo deverá arrolar cincotestemunhas, que podem ser parentes, exceto os filhos. No prazo máximode um ano e meio, o processo é finalizado.

AGÊNCIA ESTADO – Do ponto de vista jurídico, para que serve a nulidade matrimonial?

JOSANEARTACHO – Para provar que o casamento, ou o sacramento, nunca existiu.Por isso não se usa a expressão pedido de anulação de casamento. Aunião matrimonial é indissolúvel.

AGÊNCIA ESTADO – É necessário o casal estar separado no civil para pedir a nulidade?

JOSANE ARTACHO- Não, mas 99% das pessoas que pedem a nulidade do matrimônio já se separaram no civil.

AGÊNCIA ESTADO – Quais razões podem ser usadas em um pedido de nulidade?

JOSANEARTACHO – Existem muitas, mas elas podem ser agrupadas em três tipos.Os casos de impedimento, que são proibições legais, a celebração ouforma canônica (que é a própria celebração do casamento) e os vícios eos defeitos do consentimento. Os dois primeiros são mais difíceis deocorrer porque o padre, quando percebe que há irregularidades,providencia a devida dispensa ou o que é necessário para a cerimôniareligiosa.

AGÊNCIA ESTADO – Quais os outros casos de vícios do consentimento?

JOSANEARTACHO – A incapacidade para contrair matrimônio por problemas deordem psíquica, como alcoolismo, depressão profunda ciúmes exagerados,esquizofrenia, entre outros. Se uma pessoa mente sobre suas qualidades- como um traficante que diz que é um professor, por exemplo -, ocônjuge também pode pedir a nulidade do matrimônio. A coação moral -condição sob a qual muitas mulheres grávidas se casam – também pode serusada como razão.

AGÊNCIA ESTADO – Todos os casos são resolvidos aqui no Brasil?

JOSANEARTACHO – No caso de não consumação no casamento, o processo é feito deforma normal aqui no Brasil, mas o casamento precisa ser dissolvidopelo Papa.