GIULIANA MIRANDA
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Cientistas brasileiros se embrenharam por mais de 3.000 quilômetros no continente antártico -um dos ambientes mais inóspitos do planeta- para recolher amostras puríssimas de gelo que ajudam a recontar a história do planeta Terra.
Mas parte desse material, cuidadosamente transportado e armazenado, foi perdida durante um incêndio em um frigorífico comercial em Nova Santa Rita (RS), a 26 km de Porto Alegre, em abril.
Sem recursos para construir e manter uma câmara de refrigeração adequada para os chamados testemunhos de gelo, que precisam ser conservados a -20°C, os pesquisadores tiveram de alugar espaço em um frigorífico comum para conseguir guardar o material.
Por isso, os preciosos pedaços de gelo, que fazem parte de uma das mais promissoras áreas da pesquisa polar brasileira e internacional, acabaram sendo vizinhos de carregamentos de picanha, alcatra e outras inquilinas habituais das instalações frigoríficas gaúchas.
Quando o frigorífico em que as amostras estão armazenadas pegou fogo no último dia 12, os pesquisadores quase perderam 200 anos de informações sobre a história da Terra “armazenada” no gelo dos testemunhos.
O gelo científico só não evaporou e se perdeu por uma coincidência. “Foi por pouco que não perdemos tudo. Tínhamos movido as amostras para serem fotografadas para uma reportagem. Se não fosse por isso, o trabalho inteiro estaria perdido”, avalia o glaciologista Jefferson Cardia Simões, líder do Centro Polar e Climático da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e chefe da pesquisa.
Simões avalia que, mesmo assim, cerca de 10% do material armazenado foi perdido. “Ainda estamos avaliando. Mas podia ter sido bem pior”, afirma ele.
PRECIOSO
Os testemunhos de gelo são amostras em forma de cilindro, com cerca de 10 cm de diâmetro e até vários metros de comprimentos, retiradas do solo da Antártida.
Eles recebem o nome de testemunho porque o gelo antártico é uma espécie de máquina do tempo que permite conhecer a composição da atmosfera de anos atrás.
Conforme a neve vai caindo, ela “empurra” impurezas, como metano e o CO2 para baixo. Esse material acaba ficando preso nas várias camadas desse gelo. Ao longo do tempo, esses elementos “capturados” permitem conhecer o ar de eras passadas e estudá-las.
A pesquisa foi feita no polo Sul, entre 5.500 e 6.300 km ao Sul do Chuí (RS), e exige uma logística especial. O grupo de Simões foi o primeiro do Brasil a liderar um trabalho tão ao Sul do planeta -o trabalho está na vanguarda de pesquisa mundial.
As dificuldades, porém, não se limitam ao ambiente pouco amigável do continente gelado. Cada expedição para a coleta dos testemunhos não sai por menos de US$ 300 mil dólares, uma vez que é preciso aluguel de avião especial para neve e toda a logística de transporte, com refrigeração adequada e sem risco de contaminação do material coletado.
E embora a pesquisa seja liderada por um grupo brasileiro, as amostras vão primeiro para os Estados Unidos, onde passam por uma análise inicial.
“Trazer as amostras da Antártida para o Brasil exige uma série de laudos, autorização da Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária], entre outras coisas. É burocrático e, muitas vezes, não se tem a garantia de que os testemunhos vão ficar guardados nas condições adequadas”, diz o líder do trabalho, Jefferson Simões.
“Para não correr o risco de vermos o material derreter e ter nosso trabalho e dinheiro literalmente indo pelo ralo, nós mandamos primeiro para os EUA, onde os trâmites são mais fáceis. Eu, como cientista, só preciso assinar um papel me responsabilizando e comprovando a origem”, explica o glaciologista.
PESQUISA AMEAÇADA
Para o pesquisador da UFRGS, além da burocracia brasileira, hoje a pesquisa sofre uma ameaça sem precedentes de falta de infraestrutura e verbas.
“Nós temos uma câmara fria de emergência no nosso laboratório na universidade, mas não podemos ligá-la porque a energia do campus não dá conta”, indigna-se.
Um dos principais nomes do programa antártico do Brasil, o pesquisador diz que o país pode ficar sem nenhum trabalho na Antártida no verão antártico de 2017 e 2018.
“O Brasil pode passar pelo constrangimento de ter uma estação moderníssima, mas sem nenhum cientista para usufruir disso”, alerta.
A nova base brasileira na Antártida está sendo construída pela estatal chinesa Ceiec, contratada por US$ 99,6 milhões para a obra. A estação anterior foi destruída por um incêndio em 2012 que deixou dois mortos.