ÉRICO ASSIS

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O espectro das adaptações dos quadrinhos para o cinema vai dos filmes que se prendem aos desenhos como storyboard até os que reescrevem o original e só aproveitam o título.

“Tungstênio”, que estreia nesta quinta (21), tende para a primeira opção. O filme não só reproduz em fotogramas os enquadramentos de Marcello Quintanilha na HQ homônima, mas também deixa intactos diálogos, narração e a estrutura não linear que o quadrinista criou.

“Entrei na pilha da fidelidade total”, diz o diretor Heitor Dhalia em entrevista à reportagem. “Achei que a obra merecia e também quis me dar o desafio de traduzir do modo mais fiel possível.”

“Tungstênio”, a HQ, foi lançada em 2014. Quatro personagens -um sargento reformado, um garoto envolvido com tráfico e pequenos roubos, um policial e sua mulher- viram quatro pontos de vista sobre um dia em Salvador. A maior parte da trama se dá em frente ao forte de Nossa Senhora de Monte Serrat, na capital baiana, onde pescadores pescam com bombas.

Em quatro anos, a HQ teve carreira meteórica. Foram seis traduções na Europa e o prêmio de melhor quadrinho policial no prestigiado Festival d’Angoulême, na França. Foi a primeira história de fôlego (180 páginas) que Quintanilha escreveu e desenhou.

Heitor Dhalia foi apresentado à HQ pelo produtor LG Tubaldini Jr. (de “O Vendedor de Sonhos”). O diretor diz que foi atraído pelo título -referência ao metal mais pesado da tabela periódica- e pelo “recorte das tensões do Brasil de hoje, com as pessoas excluídas, o acúmulo das tensões sociais, a violência urbana”.

Ao mesmo tempo, o roteirista Marçal Aquino, parceiro de Dhalia em “O Cheiro do Ralo”, já vinha desenvolvendo “Tungstênio” na Globo Filmes. Juntos, os dois apresentaram a proposta da adaptação a Quintanilha. O quadrinista escreveu a primeira versão do roteiro, que ganhou novo tratamento por Aquino e Fernando Bonassi.

Dhalia e equipe trabalharam de frente para as páginas da HQ coladas numa parede, encontrando pontos onde podiam reproduzir, no fotograma, os enquadramentos desenhados. Foi puro capricho (veja imagens nesta página), e um capricho complicado: “Na vida real, o barco [dos pescadores] se mexe quando está no mar”, brinca o diretor.

Estar sempre diante das páginas também ajudou a equipe a encontrar a melhor forma de traduzir a montagem complexa da HQ. O filme segue a mudança constante entre os pontos de vista dos quatro personagens, somada de flashbacks e flashforwards.

O que amarra a trama é um narrador onisciente que Dhalia chamou de “machadiano”: nada confiável, a voz pode ser leal a cada um dos personagens, ou traí-los. Apesar de um preconceito generalizado contra o off, Dhalia manteve-o intacto do quadrinho e colocou-o na voz do ator Milhem Cortaz.

Um ponto destoa levemente entre HQ e filme: a relação do casal Keira e Richard, metade do quarteto de protagonistas, interpretados por Samira Carvalho Bento e Fabrício Boliveira. Por um lado, cortou-se uma cena de estupro. Por outro, a relação abusiva ganhou cenas passionais mais prolongadas.

“A cena do estupro doméstico foi muito conversada com o elenco feminino e com feministas”, diz Dhalia. “No quadrinho, ela passa quase despercebida. Filmada, ficaria muito pesada. Como eu não poderia me aprofundar nesse tema, não quis entrar.”

A produção também passou por um momento forte de contato com a realidade. Num dia de filmagem, uma briga de gangues terminou com um garoto que pulou no mar e foi perseguido pela gangue rival. Um barco da produção teve que salvar dois jovens do afogamento. “Foi o tungstênio da vida real”, diz Dhalia.

Dhalia vê no quadrinista “um grande retratista da periferia brasileira”. E cita o personagem do sargento -tão indignado com a situação geral que recorre à violência- como símbolo das tensões que eclodem no ano de eleição presidencial. “O personagem era irônico. Agora, virou real.”

NOVA HQ

O novo álbum de Marcello Quintanilha é uma espécie de arquivo das três décadas de carreira. “Todos os Santos” (Veneta, 112 p., R$ 84,90) começa por reproduções de histórias que ele desenhou para gibis como “Histórias Reais de Drácula”, em fins dos anos 1980, quando tinha 16 anos.

Em relação a possíveis pudores de mostrar páginas da adolescência, “não houve nenhum trabalho de convencimento”. A decisão de reproduzir estas e outras peças de arquivo foi tanto dele quanto de seus editores.

Logo a seguir, em duas histórias de 1991, já se apresentam parte dos traços, temas e ritmos pelos quais Quintanilha ficaria conhecido: realismo social, personagens de estratos mais baixos, cortes abruptos em cenas e em diálogos.

Críticos, tanto no Brasil quanto no exterior, já compararam o trabalho do quadrinista ao cinema neorrealista italiano.

Ele acha injusto citar filmes ou cenas preferidas do movimento cinematográfico, mas “se você me obriga, cito o fuzilamento do padre Pietro, em ‘Roma, Cidade Aberta’ [1945]”.

“Todos os Santos” ainda reúne tiras, ilustrações para jornais e outros materiais de gaveta. Uma das ilustrações traz um homem com a faixa presidencial brasileira sendo conduzido pela polícia. O desenho é identificado apenas como “projeto de capa, 2000”, distante das notícias sobre presidentes e prisões em 2018.