As nossas crianças são as mais lindas e inteligentes do Brasil. (…) Elas são tão apaixonantes, são anjos na realidade. E não é fácil coordenar uma falange de anjos, não é mesmo?. Difícil conter as lágrimas ao ouvir uma frase carregada de tanto amor, emoção e orgulho. Essas crianças são estudantes da Casa Meio Norte, localizada na periferia de Teresina, no Piauí, que atende 900 alunos, a maioria do ensino fundamental. Muitos desses seres angelicais são filhos de prostitutas, traficantes, ladrões. Outros não têm nem mesmo uma família e há também os afortunados que possuem um lar mais estruturado, porém todos fazem parte de um ambiente marcado pela pobreza e pela violência. Mas não na escola. Na instituição de ensino que encantou o escritor Ignácio de Loyola Brandão, os alunos são recebidos, logo na entrada, com beijos e abraços pela equipe.

A diretora pedagógica Ruthnéia Vieira Lima Costa, autora dos elogios do início dessa matéria, ressalta que essa atitude foi fundamental para desarmar os alunos, que chegavam a ir munidos de facas e até revólveres para as aulas, quando a escola começou suas atividades em 2000, no bairro Cidade Leste, em uma área bastante isolada. O amor foi essencial para mudar o comportamento dos jovens e abrir caminho para o aprendizado. Entretanto, para a realidade cruel dos números, 68% de evasão e 84% de distorção escolar (quando a idade do aluno é superior à série que está cursando), apenas amor não bastava. Era necessário desenvolver novas pedagogias capazes de produzir resultados melhores do que as técnicas tradicionais.

No Rio de Janeiro, uma realidade longe de ser cheia de encantos motivou a criação do Projeto Uerê pela artista plástica e educadora Yvonne Bezerra de Mello. Localizada no Complexo da Maré, bairro predominantemente ocupado por favelas e conjuntos habitacionais, a escola-modelo do Uerê atende atualmente 120 alunos. Com a finalidade de melhorar o aprendizado de crianças com bloqueios cognitivos e emocionais, Yvonne desenvolveu uma pedagogia própria, denominada Uerê-Mello, que também se tornou uma das políticas públicas implementadas na rede de ensino do Rio de Janeiro. Mais de 3 mil crianças já foram atendidas pelo Uerê. Na unidade modelo, os estudantes participam durante o contraturno de suas escolas regulares de atividades de alfabetização, ensino alternativo das disciplinas, além de aulas de dança, capoeira e música, entre outras. Como na Casa Meio Norte, o desafio é apresentar aos jovens, que vivem sob tensão constante por causa da guerra das facções do tráfico de drogas e conflitos com a polícia, um universo de possibilidades para um futuro melhor que só por meio da educação é possível alcançar.

Mas diante de tantas dificuldades, de tanta violência e de tão poucos recursos, como essas duas iniciativas conseguiram se tornar exemplos de sucesso, reconhecidos em território nacional e até internacional? O que os professores desses projetos já consolidados fazem ou têm de diferente? Qual é a chave secreta para a mudança? Cada experiência seguiu seus próprios caminhos, porém existem alguns pontos de congruência e também algumas ações práticas que possibilitaram chegar a resultados que extrapolaram as expectativas até mesmo de seus idealizadores.

Casa Meio Norte

O principal aspecto comum aos dois casos foi a vontade de fazer, de não esperar acontecer. Quando chegaram à Casa Meio Norte, primeiramente a diretora Osana Santos Morais e, alguns meses depois, Ruthnéia, a escola estava depredada, havia alunos de 15, 16 anos sem saber ler e possuía uma equipe de professores desleixados, que acumulavam faltas. Três ações iniciais marcaram o início da recuperação da instituição de ensino: a aproximação dos alunos, por meio da demonstração do afeto; a chamada da equipe para o compromisso com o trabalho; e a participação da comunidade. Depois da criação de um conselho, foi estabelecido o projeto político-pedagógico e a missão da escola. Parecia muito utópico naquele momento para os olhos pessimistas e não entusiasmados, mas nós dissemos que nossa missão era sermos reconhecidos pela qualidade de ensino, relembra Ruthnéia. Apesar da dura realidade que se apresentava, a diretora pedagógica conta que a equipe que se formou (a maioria dos antigos professores abandonou o barco) decidiu sonhar. Nós não focamos no problema, focamos na solução, onde queremos chegar. A matéria-prima que nós temos é essa, então é ela que utilizamos para chegar onde determinamos. Temos que ser muito bons nas estratégias, afirma Ruthnéia com seu tom sempre forte e decidido, de uma mulher otimista que sabe sonhar alto, porém que não perde o chão.

As estratégias usadas fugiram das técnicas pedagógicas tradicionais porque o foco era respeitar as singularidades daquelas crianças e adolescentes, criando soluções específicas para os problemas encontrados. Um dos primeiros passos foi fazer os alunos amarem a escola e melhorarem sua autoestima. Para isso, a instituição adotou a acolhida. Além de receber beijos e abraços, logo na entrada os estudantes se reúnem para cantar Conquistando o impossível, música de Jamily, uma ex-caloura do programa Raul Gil. Acredite é hora de vencer, essa força vem de dentro de você e Campeão, vencedor são alguns dos versos que as crianças cantam a plenos pulmões. Também era preciso lutar contra a evasão e esse combate travou-se no corpo a corpo. Voluntários da comunidade e professores batiam nas portas das casas dos alunos ausentes e, já em 2003, o indíce de evasão praticamente zerou.

Frente à alta taxa de distorção escolar e aos níveis muito precários de alfabetização que os alunos, mesmo os adolescentes, se encontravam, a equipe da Casa Meio Norte resolveu radicalizar. No início, foram ignoradas as séries dos alunos e todos foram divididos conforme o nível de leitura e compreensão. Somente após o domínio da leitura é que eram aplicados testes para avaliar as habilidades do aluno e só então encaminhá-lo para a série mais adequada. Atualmente, a leitura continua a ser o ponto-chave do aprendizado na Casa Meio Norte e lá os estudantes chegam a ler de 20 a 40 livros por mês (sim, você não leu errado, o número está correto e foi essa marca impressionante que despertou a curiosidade do escritor Ignácio de Loyola Brandão em conhecer a escola). A instituição não tem biblioteca, mas os livros ficam mais próximos dos estudantes: cada sala de aula tem uma sacola da sabedoria com 40 títulos, que vão sendo trocados periodicamente. As crianças também levam as obras para casa, há um projeto de leitura na comunidade e sexta-feira é um dia dedicado exclusivamente a essa atividade, para que os alunos conheçam mais os autores, seus temas e produzam textos.

Por meio de didáticas alternativas e métodos próprios, formação contínua dos professores na própria escola, conforme o surgimento de novas necessidades, e avaliação frequente do corpo docente pela equipe pedagógica e pelos alunos, a Casa Meio Norte alcançou resultados surpreendentes. Já em 2006 acabou com a distorção escolar e, no ano passado, obteve a média de 6,4 no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb). É importante ressaltar que na Casa Meio Norte não há provas; os estudantes são avaliados dia a dia pelos professores e pela diretoria. Segundo Ruthnéia, o objetivo é não deixar crescer o medo da avaliação.

Para a diretora pedagógica, o que torna todas essas transformações e resultados possíveis é o compromisso social do professor. Ela acredita que muitos docentes ainda esperam que as mudanças ocorram de cima para baixo, além de atrelar demais seu trabalho ao que ganham e ficar buscando culpados para o insucesso no aprendizado, ao invés de analisar seu preparo e a qualidade de sua aula, buscando oferecer o melhor de si. É olhar para cada criança e perceber nela um sujeito de capacidade, de possibilidades de aprendizado, ver em cada uma a possibilidade de sucesso, independentemente do contexto em que ela viva, resume Ruthnéia.

Projeto Uerê

Confiar na capacidade dos estudantes também é premissa fundamental no trabalho desenvolvido no Projeto Uerê. Quando questionada sobre como conseguem fazer os jovens acreditarem que podem construir um futuro melhor, apesar da dura realidade em que vivem, Yvonne responde: Mostrando que todos podem aprender e ter bons resultados escolares. A maioria das crianças apresentando bloqueios de cognição não é doente e apresenta uma inteligência intacta. Trabalhar essa inteligência é um desafio para países como o Brasil, que mostram índices alarmantes de baixo desempenho escolar. Esses bloqueios que a educadora menciona atrapalham o aprendizado, inclusive interferindo em certas áreas do cérebro como pré-cortex e hipocampo, e são causados pelos traumas constantes aos quais esses estudantes estão submetidos. Os problemas apresentados pelas crianças que chegam ao Projeto Uerê constituem o reflexo de um conjunto de sintomas que são a resposta psicológica e biológica diante de fatos traumáticos que modificam o seu cotidiano, afirma a educadora.

Lidar com esses bloqueios cognitivos, que de forma geral não são abordados nos cursos de Pedagogia, requer novas metodologias e um processo diferente de interação entre professores e alunos. Yvonne desenvolveu seu método ao longo de 35 anos de experiência e estudos, inclusive com crianças em sociedades em conflito da África, realidade não muito diferente das favelas brasileiras. A oralidade ocupa grande parte da pedagogia desenvolvida pela educadora. O aprendizado em sala de aula envolve momentos de curta duração, com uso sistemático da repetição de assuntos e ações, e são feitos exercícios orais diários para aumento de velocidade cerebral e armazenamento de informações. Em todas as matérias, são empregadas dinâmicas orais antes das atividades escritas. É nos momentos de oralidade que vamos preenchendo os vácuos do conhecimento que não se fizeram em diversas faixas etárias, explica Yvonne. A reabilitação cognitiva de crianças com problemas, segundo a educadora, leva de seis meses a um ano. E o sucesso nesse trabalho desencadeia longas listas de espera por uma vaga na escola-modelo.

O Projeto Uerê recebe muitos alunos com dificuldades no processo de alfabetização e até casos difíceis de explicar, como uma aluna que cursa o 9º ano na escola regular, porém não é alfabetizada. Para lidar com casos complicados como esse, a motivação dos professores vem dos resultados obtidos no dia a dia, que acabam ultrapassando os muros da escola. A gente mudando a criança acaba mudando os pais, a gente vê um desenvolvimento não só na criança, como nos pais dela também, na maneira de falar, de agradecer, relata a professora Liliane Maria de França, há oito anos no projeto. O fato de muitos educadores conviverem na mesma comunidade que os alunos ajuda na aproximação e os problemas de violência são tratados sem rodeios. Ontem teve tiro aqui e eles já vieram comentando. Então, conversamos, demos os conselhos e logo depois passamos para os exercícios. Assim eles obtêm as informações do exercício tranquilos. Conversamos sobre todos os assuntos mais abertamente, conta a educadora Daniele Ferreira de Lima, que trabalha na instituição há três anos.

A parceria com empresas privadas é um dos caminhos usados tanto pela Casa Meio Norte quanto pelo Projeto Uerê para acelerar a realização de algumas propostas. Entretanto, o fator primordial para o sucesso das duas iniciativas, que não apenas contribuem para o aprendizado, mas criam uma harmonia social nas comunidades envolvidas, resume-se a três palavras: querer fazer diferente. O poder de transformar já existe nas mãos de todo educador.

Matéria produzida pela revista Profissão Mestre. Para saber mais, acesse o site da Profissão Mestre ou siga no Twitter e Facebook.