O conceito de disco raro pode ser definido tanto por aquele difícil de encontrar como o de qualidade extraordinária. Obviamente, nem sempre uma característica é inerente à outra. O segundo lote com 20 CDs da série “Som Livre Masters” reúne títulos que receberam esse predicado por ambos os motivos, a maioria saindo pela primeira vez em CD. Um deles é “Vivo!”, clássico de Alceu Valença de 1976 Entre os demais se destacam “Vanguarda” (1965), de Agostinho dos Santos; e “História do Brasil”, que inclui o de sambas enredo “O Negro no Brasil” (1976), excelente projeto de compilação do gênero, que já foi mais radiante do que se conhece hoje, ainda mais enaltecido por vozes como as de Everaldo Cruz e Dinalva.

Igualmente indispensáveis são “Canção do Amor mais Triste” (1962), de Maysa (grafado Maisa na capa); “Boca da Noite” (1974) de Toquinho; “Passaredo” (1977), de Francis Hime, com participação do parceiro Chico Buarque; e “Acabou Chorare” (1972), o segundo e mais importante dos Novos Baianos, que, embora tenha sido reeditado várias vezes em CD, sai agora pela primeira vez com a capa e o encarte originais. Essa, aliás, é uma das qualidades da coleção cuidadosamente administrada pelo produtor Charles Gavin.

OUTRAS FONTES

Desta vez não são apenas títulos do acervo da própria Som Livre, mas de outras gravadoras extintas, como Fermata e RGE, que complementam com vigor a coleção de álbuns clássicos desta última, também recém-lançada. A série da Som Livre contempla raridades de diversos gêneros, incluindo trabalhos de expoentes da música instrumental – Guiomar Novaes, Paulinho Nogueira e o sexteto do argentino Hector Costita, com discos homônimos – e do suingue de samba e soul como Don Beto (“Nossa Imaginação”, 1978) e o Trio Mocotó (idem, 1973).

O de Don Beto tem arranjos de Lincoln Olivetti, um dos maiores contribuintes para a pasteurização intragável da maior parte da MPB dos anos 80, mas aqui ainda não tinha feito o estrago. O balanço atemporal do Mocotó nesse álbum vem a bordo de temas raros de Roberto e Erasmo Carlos (“Samba da Preguiça”), Jorge Ben (“Palomares”) e uma excêntrica versão de “Raindrops Keep Fallin’ on My Head” (Burt Bacharach e Hal David) tocada na cuíca

Nessa seara também ressurgem, a título de curiosidade, um muito bom álbum do obscuro Som Okey 5 (idem, 1969) e um razoável dos esquecidos Tom & Dito (“Se Mandar M’Imbora Eu Fico”, 1974), que ganharam alguma popularidade na época com os sambões-jóia “Tamanco Malandrinho” e “Malandragem Dela”.

O eclético baiano Moraes Moreira vem de samba, frevo, ijexá, reggae, xote, choro, no bom “Lá Vem o Brasil Descendo a Ladeira” (1979). Marcos Valle exercita a aeróbica em “Estrelar” e vitamina o disco homônimo de 1983 com versões menores de seus clássicos “Samba de Verão” e “Viola Enluarada”. Ficou datado, como ficaram os álbuns também homônimos e de estréia de Cláudia (1967), de grande voz, mas estigmatizada pela imitação de Elis Regina; do grupo roqueiro Casa das Máquinas (1974); e de Guilherme Arantes (1976, aquele de “Meu Mundo e Nada Mais”). Tem também o segundo do grupo punk satírico Joelho de Porco (1978), que derrapa na embalagem mais comercial de bons rocks do primeiro disco e hoje soa como piada velha.

ALCEU

Mas voltemos ao que interessa. O “Vivo!” de Alceu é o registro de seu show revelador “Vou Danado pra Catende”, do tempo em que discos ao vivo não tinham o padrão engana-trouxa de hoje. E os shows em si iam além de impulsionar a venda do disquinho da hora Juntando as pontas do rock e do baião, Alceu (com Zé Ramalho na banda) desafiava convenções sonoras e poéticas com o humor e a aspereza de versos como “Eu desconfio desses seus cabelos longos/Se você deixou crescer de um ano pra cá” (“Cabelos Longos”) ou “Eu fumo e tusso fumaça de gasolina” (“Papagaio do Futuro”). Também de teor inovador é, claro, “Acabou Chorare”, dos Novos Baianos. Foi quando o grupo realmente engrenou em sua simbiose de rock, samba, choro e tudo o mais, criando clássicos como “A Menina Dança”, “Preta Pretinha”, “Besta É Tu” e outros.

O relançamento de “Vanguarda” é importante por recolocar na roda a voz de Agostinho dos Santos (que não tem quase nada em catálogo) e, também, como comenta Ronaldo Bôscoli no encarte, por essa voz ter encontrado a maturidade nesse álbum, em “impressionante equilíbrio vocal”. Bôscoli assina a maioria das 12 faixas em parceria com Roberto Menescal, entre elas “A Morte de um Deus de Sal”.

A dupla também aparece em “Canção do Amor mais Triste”, que traz Maysa em plena exuberância vocal. Sua interpretação para canções como “Favela” (Hekel Tavares/Joracy Camargo) e “A Mesma Rosa Amarela” (Capiba/Carlos Pena Filho) é imbatível. Assim como o violão pós-bossa nova de Toquinho em “Boca da Noite”, em que interpreta composições próprias, sozinho ou em parceria com Paulo Vanzolini, Geraldo Vandré, Vinicius de Moraes, e reconstitui temas de Dorival Caymmi, Canhoto da Paraíba, Pixinguinha e Luiz Gonzaga. Exemplar.